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O Homem Romântico

Gusdorf: Superabundância de sentido

Tomo XI – Primeira Parte

A ruptura ontológica entre o Iluminismo e o Romantismo  
  • A sabedoria   do século das Luzes circunscreve-se a uma sabedoria dos limites, sintetizada na resignação final de Cândido de cultivar o próprio jardim   após o término das aventuras, ao passo que a sensibilidade romântica se situa nos confins do ilimitado, abandonando-se às tentações da aventura perpétua onde a morte  , tal como ocorre a Dom Quixote, é apenas um   acidente ou um novo ponto de partida para a verdadeira busca   de sentido   que se encontra indefinidamente para lá da linha do horizonte que aprisiona a realidade  . O segredo   de Quixote torna-se o segredo dos românticos, que o elegem como intercessor na sua descoberta fundamental da ausência de sentido na imanência, desdobrando um imenso discurso   sobre a insuficiência ontológica da realidade, a qual se revela escassa demais para comportar a plenitude do sentido ou para permitir que este venha ao mundo   e crie um universo   à sua medida, uma vez que o sentido romântico não cabe nos limites geográficos e racionais do jardim de Cândido.

  • O empirismo do século XVIII pretendia reduzir a mente a uma página em branco ou a um espelho onde a ordem das coisas se refletiria sem sombras, preenchendo o espaço mental com os fenômenos do universo de forma   plena e sem recantos para remorsos ou segundas intenções, resultando numa moral   e religião   diminuídas a reflexões secundárias sobre a organização da produção e distribuição de bens. Contrapondo-se a este século sem Mal  , onde indivíduos como Voltaire  , Turgot e Condorcet acreditavam na coincidência entre o sujeito e a sua época e viam o desespero apenas como um desordem social passageira passível de correção racional, o mal do século romântico implica a consciência   dolorosa de um mal-entendido irremediável entre o homem   e o seu tempo  . O indivíduo romântico sente-se deslocado, portador de valores   que são recalcados por uma realidade indiferente, onde a superabundância do sentido se manifesta como um voto de não conformidade e a consciência se erige em objeção, encarnada nas figuras do boêmio, do dândi e do original que, por ódio à média burguesa, exasperam a sua singularidade para testemunhar a ausência de verdade   e valor no mundo exterior.

  • Diante da ascensão   da civilização industrial e burguesa, o indivíduo torna-se um dissidente ou um emigrado interior, sofrendo de um mal-estar analisado por Lamennais como uma ruptura de todos os laços e uma dissolução da    social, onde os espíritos flutuam ao acaso num desordem universal que engendra um insaciável desejo de destruição e um nojo da vida  . Este diagnóstico de carência e patologia espiritual, contudo, é apenas o reverso de uma afirmação resoluta, pois a perda de todo   sentido resulta paradoxalmente de uma superabundância de sentido que exige tudo e não se consola com o parcial; tal como George Sand observa em 1843, a dúvida e a doença do século são crises de crescimento onde a liberdade  , mãe   poderosa, acabará por elevar o seu filho   doente em direção à luz   e à fé robusta, revelando que o romantismo, seja no ateísmo ou no messianismo social, rejeita a tibieza e habita sempre os extremos da temperatura espiritual.

A percepção   poética, o Surrealismo e a crítica   ao Sensualismo
  • O romantismo configura-se como um surrealismo avant la lettre, onde a percepção não se submete à lei do objeto, mas impõe a lei do sujeito, rejeitando a estátua de Condillac que apenas totaliza impressões sensoriais externas para formar uma cópia geométrica do mundo. Contra as doutrinas clássicas que assimilam o olho a uma câmara escura e reduzem a presença concreta das coisas a projeções planimétricas, a experiência romântica, exemplificada pela leitura   que Senancour faz de um junquilho em Oberman ou pela pervinca de Jean-Jacques Rousseau, demonstra que a flor não é uma estrutura   botânica de formas e cores, mas uma abertura para um mundo outro e melhor, uma mensageira de revelações que transfiguram a existência   e ressuscitam a felicidade   perdida ou a memória   de presenças inesquecíveis como a de Madame de Warens ou a de Sophie von Kühn, a Flor Azul de Novalis  .

  • A realidade humana da presença no mundo resiste ao rebatimento num campo de axiomática geométrica, pois o intelectualismo desenvolve um geometrismo mórbido que aliena o sujeito num espaço neutralizado, enquanto a visão   romântica mobiliza um excedente de sentido que propõe um excedente de verdade para além da exatidão material. Assim como Turner viu os vapores da era industrial como poeta e Monet reconquistou a gare Saint-Lazare para o mundo visionário da arte  , demonstrando que a impressão é uma harmonia de luzes e cores anterior à abstração   geométrica, a visão romântica opõe à linearidade do determinismo positivo a sobredeterminação da realidade humana, rica em significações sentimentais, morais e estéticas que não são revestimentos secundários, mas doadoras originárias de sentido que estruturam a consciência de situação.

O Märchen, o Sonho   e a Natureza   como linguagem   mágica
  • A poética romântica opera segundo o princípio formulado por Novalis de que o mundo se torna sonho e o sonho se torna mundo, estabelecendo que a vida onírica não é uma existência secundária, mas a vida primordial e essencial onde se anuncia a unidade do ser   dispersa pelo cotidiano. Em obras como Aurélia, Gérard de Nerval   relata experiências de inteligibilidade transcendente que a medicina classificaria como patológicas, mas que para o poeta constituem uma iniciação   sagrada onde a natureza inteira — plantas, animais e minerais — ganha voz e se revela como uma rede transparente de correspondências magnéticas que ligam o indivíduo ao coro dos astros, desafiando as leis da lógica e da física em favor de uma comunicação imediata entre a consciência e o universo.

  • O Märchen germânico, cultivado por Novalis, Tieck  , Arnim, Brentano e Hoffmann  , transcende a categoria de simples conto de fadas   ou narrativa   folclórica compilada pelos irmãos Grimm   para se constituir como o cânone da poesia   e a forma suprema de compreensão   do real, definida não pela coerência lógica, mas por uma harmonia musical interna (Stimmung) e pela abolição das fronteiras entre os séculos e os mundos. Para Novalis, o Märchen é a representação de um estado de natureza anterior à ordem civil, um tempo de anarquia e liberdade onde a natureza não está petrificada pelas utilidades práticas, mas desperta para a sua musicalidade intrínseca; a natureza material é vista como uma cidade   mágica petrificada ou uma música   congelada que o poeta, tal como Orfeu, tem o poder   de libertar, transformando o caos aparente numa profecia   de redenção onde tudo é maravilhoso, misterioso e animado.

  • A categoria do maravilhoso estende-se para além do Märchen literário e abarca a religião e a própria percepção do mundo, onde o milagre   não é apenas um evento material, mas um signo da graça e da presença divina que transfigura as significações habituais. Escritores como Jean-Paul Richter ilustram esta radiância sobrenatural onde personagens   vivem em idílios que ignoram os determinismos práticos, habitando um mundo governado pela imaginação e pelo coração   que é mais verdadeiro do que a realidade tangível; esta visão conecta-se com a ideia de uma "fantástica" proposta por Novalis, uma doutrina da imaginação criadora que seria para a estética o que a lógica é para a razão, restituindo à faculdade imaginativa a sua autonomia e o seu poder cosmogônico de gerar mundos e revelar as forças desconhecidas do interior humano.

O Fantástico, o abismo interior e a compensação social
  • Enquanto o Märchen tende para a luz e para a reconciliação final, o fantástico romântico, herdeiro do romance gótico, explora o lado noturno da consciência e as regiões onde as sombras ocultam a luz, transformando o outro   mundo não num paraíso  , mas num reverso tenebroso povoado pelos monstros do refreamento, da angústia e da má consciência. E. T. A. Hoffmann, descrito como o anjo do bizarro, encarna este fantástico onde os conflitos da existência são insolúveis e a vida é inviável, restando à arte a função não de consolar, mas de capturar os instantes fugazes de harmonia ou de exorcizar os demônios através da encenação   literária; escrever   torna-se um ato   de resistência ao desespero e ao suicídio, um jogo   que desrealiza a morte ao organizá-la sob a vontade do narrador que domestica os seus próprios fantasmas.

  • Charles Nodier, teórico e praticante do gênero em França, defende que o pendor para o maravilhoso e para o fantástico é a única compensação providencial contra as misérias da vida social e o desencantamento do mundo promovido por uma ciência   de formas mortas e um positivismo sem alma  . Identificando o romântico com o fantástico, Nodier sustenta que o ressurgimento das fábulas e das quimeras nas épocas de decadência ou transição é um instinto de conservação moral da humanidade que, ao tocar a nudez repulsiva das realidades, sucumbiria ao desespero e à dissolução sem o refúgio na imaginação; ele critica o despotismo acadêmico e a censura do classicismo francês que reprimiram esta liberdade imaginativa, contrastando a esterilidade francesa com a fecundidade germânica onde a fonte   da juventude da imaginação permaneceu acessível.

  • O fantástico opera um reordenamento da presença no mundo através de um exotismo interior, onde a realidade familiar se torna ambígua e plástica, revelando uma face oculta sob os sedimentos da cotidianidade e sugerindo que somos prisioneiros de disciplinas repressivas que matam a poesia e o princípio visionário. Sainte-Beuve, ao analisar Hoffmann, nota que este descobriu um sexto sentido para o excêntrico e para o maravilhoso que reside nas margens da existência visível, comparando o contista a um selvagem capaz de ler   sinais imperceptíveis ou a um Mesmer da poesia que desnuda o magnetismo oculto nas relações humanas, validando a ideia de que a verdade do coração e da emoção   reside muitas vezes no desvio, na loucura e no sonho, que deixam de ser detritos da vida consciente para se tornarem, como em Aurélia, uma segunda vida mais lúcida e autêntica.

O Sobrenaturalismo e a onipotência da consciência
  • A superabundância do sentido romântico culmina na afirmação de que não há espaço suficiente no universo real para as exigências do ser humano, o que leva à formulação de um "sobrenaturalismo" estético e filosófico, termo utilizado por Heine e adotado por Hugo, Nerval e Baudelaire  . Para Heine, o artista é um sobrenaturalista que não copia a natureza, mas projeta nela os tipos revelados na sua alma, purificando as formas naturais no fogo   do gênio para as elevar a um céu da arte onde a beleza   é eterna; esta estética antecipa o simbolismo   e o pré-rafaelismo ao postular que a realidade invisível tem primazia sobre as aparências e que o Verbo criador do poeta repete analogicamente o ato divino   da Criação  .

  • Victor Hugo  , na sua Contemplação   Suprema, sistematiza este sobrenaturalismo ao atribuir ao poeta um triplo olhar composto de observação, imaginação e intuição  , sendo esta última a porta para o sobrenatural, que ele define paradoxalmente não como algo fora da natureza, mas como a "natureza longe demais", a parte do real que escapa aos nossos sentidos e à ciência oficial momentânea. Hugo argumenta que fenômenos hoje rejeitados como o espiritismo ou o magnetismo são apenas segmentos da natureza que aguardam a sua inscrição nos registros da ciência futura, tal como ocorreu com a eletricidade e o galvanismo; contudo, para além da ciência, o sobrenaturalismo hugoano afirma a vertigem da interioridade: é dentro de si que o homem deve olhar o fora, pois o espelho escuro da alma reflete o mundo imenso num círculo estreito, revelando que a consciência é um ponto de parada no tecido dos fenômenos onde o infinito   se inscreve no finito e onde o sujeito da consciência jamais se reduz a um objeto.


Ver online : Georges Gusdorf


GUSDORF, Georges. L’homme romantique. Paris : Les Éditions Payot, 1984