Página inicial > Hermenêutica > Caputo: Uma questão de interpretação
Hermenêutica
Caputo: Uma questão de interpretação
Fatos e interpretação na era da informação
O que é hermenêutica ?
- A hermenêutica configura-se como a teoria da interpretação, sustentando a premissa fundamental de que a totalidade da experiência e da compreensão é uma questão interpretativa. Defende-se a ideia de que não existem fatos puros ou isolados, pois por trás de cada interpretação reside invariavelmente outra camada interpretativa, sendo impossível descascar as camadas de sentido para atingir um fato nu e cru, desprovido de mediação; mesmo a proclamação ruidosa de adesão estrita aos fatos constitui, em si mesma, uma amplificação do volume da própria interpretação do sujeito, de modo que a interpretação permeia toda a profundidade da realidade .
Mas certas coisas não são apenas fatos? / Então, afirma-se que os fatos não importam. Como se pode negar que exista uma distinção entre um fato neutro e uma interpretação?
- Ainda que as interpretações permeiem toda a realidade, os fatos possuem relevância significativa, dependendo crucialmente da compreensão do que eles constituem ontologicamente. Para compreender qualquer objeto ou evento, é imprescindível possuir um ângulo, uma perspectiva ou um viés interpretativo, na ausência do qual a compreensão é inexistente, assemelhando-se ao olhar vazio de estudantes diante de uma tarefa sem ponto de partida; os fatos encontrados são, portanto, função dos interesses possuídos, e uma compreensão desinteressada ou neutra é uma impossibilidade prática que jamais produziu qualquer resultado intelectual concreto.
‘Hermenêutica’ e ‘interpretação’ são termos intercambiáveis?
- Embora a etimologia remeta ao grego para hermenêutica e ao latim para interpretação, é analiticamente mais rigoroso distinguir a interpretação como a arte ou o ato de primeira ordem — como a análise realizada por um crítico de cinema, um radiologista, um historiador sobre a Primeira Guerra Mundial ou um economista sobre uma recessão — e a hermenêutica como a teoria filosófica dessa arte. A hermenêutica atua como uma reflexão de segunda ordem sobre o trabalho concreto de interpretação realizado nas artes, nas ciências e no cotidiano, não se propondo a ser um manual técnico, mas uma elucidação filosófica sobre o que ocorre no processo de compreender.
Por que filosófica? / Por que adicionar ‘pós-moderna’ à hermenêutica? / Então, qual é a diferença?
- A natureza filosófica da hermenêutica reside em sua descrição da verdade como algo adquirido exclusivamente via interpretação e na definição do ser humano como intrinsecamente interpretativo, possuindo uma história que remonta a Aristoteles e que se divide entre a era moderna e a pós-moderna. Na modernidade , iniciada com a Reforma Protestante, as humanidades defenderam-se do prestígio das ciências naturais alegando possuir um método próprio para a compreensão de significados não matemáticos; contudo, a virada pós-moderna do século XX, instruída pela modernidade mas indo além dela, rejeitou a divisão rígida, postulando que todo ato de compreensão, inclusive nas ciências naturais, é interpretativo e que a verdade excede a rigidez do método, o qual pode se tornar um obstáculo à própria descoberta da verdade.
Pode-se ver isso nas humanidades, mas não nas ciências naturais. / Mas o que acontece com a objetividade em toda essa interpretação? Especialmente nas ciências?
- Historiadores da ciência do século XX demonstraram que a prática científica real é muito mais desordenada e interpretativa do que os filósofos modernos supunham, envolvendo a proposição de hipóteses especulativas e a persistência em ideias com poucas evidências, assemelhando-se as revoluções científicas a mudanças políticas ou artísticas. Nesse contexto , a objetividade não é descartada, mas redescrita e circunscrita com cautela, substituindo-se a noção de fatos puros ou objetividade absoluta pela distinção crítica entre boas e más interpretações, dentro de um processo de desconstrução das verdades prontas.
O que se entende por ‘desconstruir’? O que é isso?
- A desconstrução, enquanto vertente do pós-modernismo integrada à hermenêutica, postula que todas as crenças e práticas são construções e, consequentemente, passíveis de desconstrução e reconstrução, o que implica a possibilidade de reinterpretação infinita. Essa abordagem rejeita a existência de verdades acabadas que caem do céu, sustentando que tudo o que é construído pode ser analisado e reconfigurado, servindo como base para a ideia de uma reinterpretação contínua da realidade.
Não se compreende bem a diferença entre hermenêutica e desconstrução.
- A hermenêutica, de proveniência alemã e teológica, tende a focar na lei, na tradição e nos clássicos, partindo de uma situação herdada e adotando a conversação como modelo de inquérito; em contraste, a desconstrução, originária de um movimento francês dos anos 1960 com base na linguística, adota uma postura mais radical e suspeita, focada no escrutínio minucioso. A abordagem de uma hermenêutica radical argumenta pela interdependência dessas correntes: a hermenêutica sem a desconstrução arrisca-se à ingenuidade, enquanto a desconstrução sem a hermenêutica pode perder-se, necessitando ambas uma da outra para um inquérito completo.
O que se entende por ‘radical’?
- Na hermenêutica radical, assume-se o ponto de vista dos excluídos, dos marginalizados e daqueles cujas visões foram negligenciadas, cultivando uma disposição para o dissenso e para o questionamento de pressupostos inquestionados. Os desconstrucionistas preocupam-se com quem não consegue entrar na conversação dominante, buscando ativamente visões alternativas, anomalias e perspectivas que caíram nas fendas da tradição, mantendo uma disposição congênita para olhar as coisas de outra forma .
Por que os demais deveriam se importar com isso? Não seria tudo apenas assunto acadêmico? / Afirma-se que a hermenêutica é crucial para a democracia?
- A hermenêutica transcende o debate acadêmico ao fornecer a proteção mais robusta contra a tirania, o totalitarismo e o terror político, bem como contra o dogmatismo ético e religioso, fenômenos que surgem onde a ortodoxia rígida tenta impor uma interpretação privilegiada e sufocar o dissenso. A hermenêutica pós-moderna é, por definição, antiautoritária e democrática, pois reserva o direito de questionar qualquer instância; sem ela, torna-se impossível explicar ou praticar a democracia, cuja ausência resultaria em perseguição à própria prática interpretativa livre.
Mas se todos têm a sua própria opinião e a questão encerra-se aí, isso não seria um convite ao caos? Isso não seria tão ruim quanto o autoritarismo? / O que há de tão diferente hoje?
- O mundo pós-moderno, marcado pela tecnologia, multiculturalismo e pluralidade, apresenta uma realidade descentrada onde o fluxo dominante é interrompido por vozes das margens, evidenciando que as interpretações não são verdades eternas entregues de cima para baixo. Contudo, essa sensibilidade à diferença traz o risco do relativismo puro, um problema oposto ao autoritarismo mas igualmente perigoso, onde a verdade é dissolvida em mera opinião pessoal, o que exige vigilância crítica.
O que se entende por ‘relativismo’? / Como o quê? / Certo. Fatos importam. Então, deve-se confrontar tais pessoas com os fatos concretos.
- O relativismo insinua-se no pensamento pós-moderno de formas letais quando utilizado, por exemplo, por negacionistas da mudança climática ou teóricos da conspiração que reduzem evidências científicas a meras opiniões, ou por fanáticos religiosos que rejeitam a evolução em favor de interpretações literais do Gênesis. Embora não existam fatos puros desconectados de interpretação, isso não valida qualquer opinião; existem boas razões e interpretações baseadas em experiência comprovada — como as advertências dos cientistas climáticos, referidas por Al Gore como uma verdade inconveniente — que geram uma obrigação moral de aceitação em detrimento de visões arbitrárias ou frívolas.
Então, admite-se que existem ‘fatos alternativos’? / Portanto, a mudança climática não é apenas uma questão de interpretação?
- A expressão fatos alternativos é um ardil político cínico destinado a minar boas interpretações, devendo ser distinguida de interpretações alternativas, que são teoricamente válidas; uma boa interpretação é um tertium quid, uma terceira coisa que resolve o impasse destrutivo entre absolutismo e relativismo. Compreender a natureza da interpretação impede que questões graves sejam reduzidas pejorativamente a apenas uma questão de interpretação, reconhecendo o peso e a validade de construções hermenêuticas bem fundamentadas.
Disse-se que a palavra ‘hermenêutica’ vem do grego. Há uma história por trás disso? / Mas por que os teólogos da Reforma invocariam um deus como esse?
- A palavra deriva do mito do deus grego Hermes , uma figura trapaceira, astuta e ambiciosa para quem mentir era divino , famoso por roubar gado de Apolo e causar conflito no Olimpo, sendo posteriormente domesticado pela tradição homérica tardia e teológica em um mensageiro respeitável (angelos). Essa transformação foi obra dos seguidores do culto de Apolo e de filósofos como Platao e Aristoteles, que, preferindo a ordem aristocrática e o decoro, confinaram a natureza subversiva e independente de Hermes, esquecendo convenientemente seu caráter original de instigador e divindade autônoma.
Então, o primeiro mito de Hermes tinha um viés político? / Parece que o próprio Hermes requer uma hermenêutica.
- O mito original de Hermes possuía um viés político explícito, expressando a voz de uma classe média ascendente contra a aristocracia detentora de riqueza e poder , agindo Hermes mais como um combatente da liberdade do que como um criminoso, dependendo da perspectiva adotada. A própria figura de Hermes encapsula a diferença entre duas hermenêuticas: a do Hermes alinhado ao sistema, hierárquico e conservador, e a do Hermes trapaceiro, favorecido pelas margens e pelos excluídos, representando uma força radical e perturbadora da ordem estabelecida, vinda do demos.
Então, na hermenêutica pós-moderna, segue-se a liderança do Hermes impiedoso?
- A hermenêutica pós-moderna propõe dar voz ao Hermes trapaceiro e instigador, defendendo uma arte mais radical e arriscada, sem, contudo, abolir o Hermes mensageiro e piedoso, buscando não a eliminação das interpretações, mas a sua multiplicação. A interpretação autêntica ocorre na tensão e no desequilíbrio ótimo entre essas duas faces — a tradição e a desconstrução, o cauteloso e o arriscado — pois a eliminação de qualquer uma delas privaria a hermenêutica de sua vitalidade e de seu coração.
Ver online : John Caputo
CAPUTO, John D. Hermeneutics: facts and interpretation in the age of information. London: Pelican, an imprint of Penguin Books, 2018.