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As Origens da Hermenêutica

Gusdorf: O modelo biológico nas ciências humanas

Terceira Parte

A Epistemologia Vitalista e a Natureza   da Compreensão   Hermenêutica  

A tarefa da compreensão nas ciências humanas configura-se como uma reação contra a constante dissipação do sentido  , o qual tende a fluir como água   na areia assim que fixado em documentos, exigindo dos sábios a função de reanimadores de uma memória   humanitária permanentemente ameaçada pelo esquecimento e pela morte  , em um   processo de palingênese que visa salvar as configurações fugazes do mundo   da cultura. A hermenêutica romântica, distanciando-se do idealismo absoluto   de Fichte que isola o Eu e pretende digerir a totalidade   dos fenômenos, pressupõe um realismo fundamental onde a natureza e o homem   são existências reais, sendo que a interpretação opera na superfície de separação entre o espaço interior e o exterior, negociando o sentido como uma correspondência entre essas duas esferas sem negar a realidade   de nenhuma delas.

O ato   de compreender define-se como a apreensão de um dado anexado ao domínio mental do sujeito, operação que só se torna possível mediante uma comunidade de natureza entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido, fundamentada no princípio da analogia   que, na epistemologia romântica, estende-se para além da forma   humana e abarca a totalidade da criação  , desde os minerais e astros até os vegetais e animais, todos animados por uma mesma força   vital. Esta abordagem romântica da realidade humana tributária da filosofia   da natureza e da escatologia cristã postula que a compreensão humana possui jurisdição sobre seres e coisas em virtude de uma inteligibilidade que corresponde, em última instância, ao projeto do Criador, onde a analogia entre criatura e Criador confere garantia de significado à palavra humana.

A superação do dualismo   cartesiano e a rejeição da análise redutora caracterizam o pensamento de autores como Joseph Goerres, que opõe a analogia à análise disjuntiva, defendendo que a consciência   e o pensamento são momentos do desenvolvimento do processo vital e que a inteligibilidade orgânica irradia tanto a realidade corporal quanto a consciência incorpórea. A consciência humana é descrita não como uma mônada fechada, mas como uma força plástica situada nos confins de dois mundos, sensível aos movimentos de expansão e contração que constituem o pulso da natureza, operando em uma zona onde as significações nascem do conflito e do acordo   entre inteligibilidades concorrentes, invalidando as interpretações idealistas que pressupõem uma autonomia absoluta do sujeito.

A Identidade entre Natureza e Espírito e a Dimensão Erótica do Conhecer

O organicismo romântico engendra uma inteligibilidade universal que engloba o orgânico e o espiritual, onde cada organismo particular atua como um microcosmo em solidariedade com o macrocosmo, sendo um ponto de passagem ou istmo entre o mundo espiritual e o material, conforme teorizado por Adam Muller em sua doutrina da contradição e do antorganismo. A compreensão científica, segundo a visão   de Franz von Baader e dos filósofos da natureza, não deve reduzir-se a um empirismo descritivo ou a uma decomposição mecânica, mas deve adotar o conceito de organismo como modelo específico de inteligibilidade, no qual forma e essência, unidade e multiplicidade, são inseparáveis e idênticas, rejeitando tanto o espiritualismo abstrato quanto o mecanismo morto.

A teoria do conhecimento   no romantismo   adquire uma conotação vital e até mesmo sexual, onde o instinto de conhecer é análogo ao desejo sexual e o ato de conhecimento é compreendido como um engendramento ou uma união   carnal   que visa a plenitude, em contraste com a exterioridade do conhecimento mecânico. Franz von Baader estabelece que o conhecimento intrínseco é o gozo partilhado entre o cognoscente e o conhecido, uma apropriação amorosa que reflete o mistério da criação e a paternidade divina, sugerindo que a união do espírito e da carne tende a realizar um princípio androgínico fundamental para a elaboração da vida  , onde a carne é desejo do espírito e o espírito é exigência da carne.

A recusa em disjungir a realidade natural da realidade humana conduz a um monismo epistemológico onde as funções do espírito humano se encontram em sincronia analógica com os processos vitais do cosmos  , de modo que a razão ilumina a personalidade assim como o sol irradia o espaço, materializando o espírito e espiritualizando a matéria  . Novalis   radicaliza esta perspectiva através do idealismo mágico, sugerindo que o mundo possui uma aptidão originária para ser   animado pelo sujeito e que a plena compreensão de uma coisa exige uma identificação total, onde o sujeito transforma a substância do objeto em sua própria substância, superando a oposição massiva entre interioridade e exterioridade imposta pelas concepções fisicalistas.

A Filosofia da Vida e a Rejeição do Modelo Mecanicista

A epistemologia romântica opera uma inversão do modelo galilaico-newtoniano, substituindo o paradigma do autômato ou do relógio pelo paradigma biológico da árvore   da vida, conforme ilustrado por Friedrich Schlegel, para quem a natureza não é um mecanismo morto, mas um organismo animado por uma vida divina, cujas formas visíveis são manifestações de um espírito invisível. A filosofia da vida opõe-se às sistematizações racionais abstratas e postula que o pensamento não pode remontar para além da vida, sendo a experiência   vivida (Erlebnis) o ponto de partida e o limite de toda inteligibilidade, reconhecendo a autoridade do dado natural e a inserção do homem na totalidade do universo   em evolução.

A medicina e a antropologia românticas, antecipando a psicanálise, reconhecem a importância capital do inconsciente como zona intermediária entre o corpo   e o espírito, matriz misteriosa onde as intuições e sentimentos criam raízes, rejeitando a pretensão do racionalismo de tornar a realidade totalmente transparente à consciência reflexiva. A saúde e a doença são compreendidas como acordos ou desacordos da existência individual consigo mesma e com o cosmos, exigindo uma terapêutica global que considere a unidade indivisível do ser   humano, em oposição à medicina analítica que fragmenta o indivíduo em sintomas isolados.

A história   e a natureza são percebidas como ordens distintas, porém análogas, de inteligibilidade, onde a história representa o domínio da liberdade   humana sem, contudo, romper a continuidade com o desenvolvimento biológico, visto que a espécie humana é o ápice da odisseia da vida e a consciência é uma sublimação da vitalidade universal. Leopold von Ranke e Jules Michelet exemplificam essa historiografia vitalista, onde a compreensão histórica busca   captar a vida da humanidade em sua totalidade e onde os eventos históricos e culturais são interpretados através de categorias biológicas de crescimento, florescimento e decadência, rejeitando as construções artificiais e mecânicas da razão iluminista.

O Paradigma Orgânico na Linguística, Política e Cultura

A aplicação do modelo biológico estende-se à compreensão da sociedade   e da política, onde o Estado e a nação são concebidos não como construções contratuais artificiais, mas como organismos vivos que crescem lentamente ao longo dos séculos, enraizados na alma   do povo e governados por uma providência imanente. Pensadores como Adam Muller, Novalis e Joseph Goerres opõem a imagem   da constituição como um templo ou uma árvore que cresce organicamente à visão mecânica do Estado-máquina  , defendendo uma estrutura   corporativa onde os indivíduos e classes funcionam como órgãos interdependentes de um corpo social unificado, vitalizado por um espírito comunitário ou Volksgeist.

A linguística e a filologia românticas, representadas pelos irmãos Grimm  , Friedrich Schlegel e Ernest Renan, adotam a metodologia da anatomia comparada de Cuvier, tratando as línguas como organismos naturais que possuem genealogia, estrutura interna e leis de evolução independentes da vontade individual. A linguagem   não é uma invenção arbitrária, mas uma revelação natural e inconsciente que brota da alma popular, desenvolvendo-se, florescendo e decaindo como as plantas, sendo que o estudo   das raízes e da gramática comparada permite reconstruir a história do espírito humano e as conexões profundas entre os povos.

A valorização da cultura popular, dos contos, mitos e canções folclóricas, constitui uma revolução cultural que reabilita as manifestações espontâneas e ingênuas da alma nacional, anteriormente desprezadas pela cultura erudita e aristocrática, reconhecendo no povo e na infância os portadores da verdade   vital e da poesia   originária. A ciência   romântica, ao invés de adotar uma postura de observação distanciada e objetivante, envolve uma identificação do sábio com seu objeto de estudo, onde a investigação do passado nacional, da língua e das tradições torna-se um ato de autodescoberta e de comunhão com a vida universal, reafirmando a solidariedade entre o pesquisador e a realidade humana em devir.


Ver online : Georges Gusdorf


GUSDORF, Georges. Les origines de l’herméneutique. Paris: Payot, 1988.