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Hermenêutica
Caputo: Gadamer
Fatos e interpretação na era da informação
A Estabilização da Hermenêutica Filosófica e a Superação da Consciência Estética
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Hans-Georg Gadamer consolidou a disciplina hermenêutica no século XX ao transformar as intuições radicais de Martin Heidegger em uma narrativa compreensível e abrangente para as humanidades, despindo a ontologia heideggeriana de sua linguagem extravagante e inclinações místicas, ao mesmo tempo que manteve a ruptura fundamental com a tradição metafísica anterior. Diferente do gênio desbravador de Heidegger, Gadamer operou com a erudição de um cavalheiro urbano, dialogando profundamente com Platão, Aristóteles, o Renascimento e o idealismo alemão de Immanuel Kant a Georg Wilhelm Friedrich Hegel, culminando na obra Verdade e Método de 1960, que não prescreve regras metodológicas para historiadores ou críticos, mas oferece uma clarificação filosófica de segunda ordem sobre o que já ocorre na compreensão humana, assemelhando-se a um médico que busca o bem -estar do paciente ao invés de apenas ditar procedimentos técnicos.
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A hermenêutica filosófica rejeita a pretensão da metodologia científica moderna de deter o monopólio da verdade, argumentando que disciplinas como história e literatura já realizam atos hermenêuticos intrínsecos que dispensam a aplicação externa de modelos teóricos, funcionando não como uma polícia do conhecimento , mas como uma meditação sobre a verdade que elude o método metódico cartesiano. A crítica de Gadamer estende-se à consciência estética moderna e à instituição do museu, inovações da era da subjetividade que alienam a obra de arte de seu mundo vital e a reduzem a um objeto de contemplação desinteressada para um sujeito autônomo, distorcendo a natureza ontológica da arte que, para os gregos ou medievais, era inseparável da vida pública e religiosa, constituindo não uma cópia da realidade (mimesis platônica), mas uma intensificação e manifestação da verdade do ser .
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A experiência da arte é elucidada através da fenomenologia do jogo (Spiel), conceito que dissolve a dicotomia sujeito-objeto ao demonstrar que o jogo possui primazia sobre a consciência dos jogadores, os quais devem submeter-se às regras e perderem-se na atividade para que o jogo verdadeiramente aconteça, uma dinâmica análoga à experiência da obra de arte que não é um objeto estático para julgamento kantiano, mas um evento de verdade que captura e joga com o espectador . Recuperando a noção de polis de Aristóteles e a crítica de Hegel ao sujeito liberal, a hermenêutica compreende a existência humana como participação em uma unidade substancial, onde a crítica de arte surge apenas como uma reflexão secundária que jamais alcança a plenitude da participação vivida e que acaba por ser absorvida na própria continuidade histórica e na validade da obra.
A Historicidade da Compreensão, a Tradição e a Fusão de Horizontes
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A interpretação de textos, leis e constituições exige o abandono da intenção do autor como critério normativo definitivo, contrapondo-se à hermenêutica romântica de Friedrich Schleiermacher que buscava reconstruir a psicologia do criador, pois o significado de uma obra excede as circunstâncias de sua gênese e depende de sua capacidade de ser recontextualizada indefinidamente em novos cenários históricos. A morte estrutural do autor é condição para a vida do texto, permitindo que obras clássicas, como as de William Shakespeare ou documentos legais, evitem tornar-se monstros anacrônicos ou peças de antiquário e continuem a produzir sentidos legítimos que jamais poderiam ter sido previstos originalmente, uma vez que a escrita lança o discurso na esfera pública onde a linguagem opera com autonomia e potencialidade semântica inesgotável.
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A compreensão histórica não consiste na recuperação objetiva dos fatos "como realmente ocorreram", conforme postulava Leopold von Ranke, mas ocorre através da fusão de horizontes, um evento produtivo onde o horizonte do intérprete colide e se funde com o horizonte do passado, gerando uma nova compreensão que transforma o sujeito e expande a própria tradição. Esse processo dialógico, inspirado na dialética platônica e hegeliana, exige que o intérprete coloque seus próprios preconceitos em risco, superando o preconceito iluminista contra o preconceito, e reconheça as pré-estruturas de compreensão (analisadas por Heidegger) como orientações preliminares necessárias para o acesso à tradição, a qual é tratada como uma Sache — uma questão substantiva de interesse vital — e não como um mero objeto de estudo .
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A consciência da história dos efeitos (Wirkungsgeschichtebewusstsein) designa o reconhecimento paradoxal de que o intérprete já pertence e é formado pela história que busca objetivar, situando-se sempre a jusante no fluxo da tradição, o que implica que qualquer reflexão sobre o passado é realizada com os recursos conceituais e linguísticos herdados desse mesmo passado, como exemplificado na transmissão do pensamento de São Paulo através de Agostinho, Martinho Lutero e Søren Kierkegaard . A verdadeira objetividade hermenêutica não reside na neutralidade impossível, mas na consciência da própria finitude e na abertura para ser questionado pela alteridade do texto ou do evento histórico, em um modelo de conversação onde perguntas e respostas se entrelaçam produtivamente, similar ao método de correlação teológica de Paul Tillich.
A Universalidade da Linguagem e a Unidade da Aplicação
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A tese ontológica fundamental de que o ser que pode ser compreendido é linguagem estabelece a linguisticidade como o horizonte último e insuperável de toda a experiência humana, abrangendo inclusive as dimensões pré-linguísticas, o silêncio e as artes não verbais, que encontram sua articulação plena e seu sentido apenas quando trazidas à linguagem. A linguagem não é uma prisão, conforme sugerido por teóricos como Fredrik Jameson, mas a condição de possibilidade de manifestação do mundo, onde a conversa genuína serve de modelo universal para a hermenêutica, caracterizando-se não pelo controle dos interlocutores sobre o tópico, mas pelo fato de que ambos são conduzidos pelo próprio fluxo do diálogo — o logos — em direção a um entendimento que transcende as posições iniciais, uma dinâmica relevante tanto para a filosofia de Richard Rorty e Gianni Vattimo quanto para o diálogo inter-religioso e político.
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A prática hermenêutica recupera a distinção pietista de J. J. Rambach sobre as três sutilezas — compreensão (subtilitas intelligendi), interpretação (subtilitas explicandi) e aplicação (subtilitas applicandi) — para demonstrar que estas não constituem etapas separadas, mas momentos indissociáveis de um único processo cognitivo e existencial. A aplicação é intrínseca a toda compreensão, assemelhando-se à phronesis ou sabedoria prática aristotélica, pois compreender verdadeiramente um texto, uma lei ou uma obra de arte implica necessariamente deixar-se afetar por sua verdade e aplicar esse sentido à situação concreta do intérprete, de modo que não existe compreensão sem a consequente transformação daquele que compreende, tal como ocorre na pregação religiosa ou na experiência estética profunda citada por místicos como Mestre Eckhart e João da Cruz.
Ver online : John Caputo
CAPUTO, John D. Hermeneutics: facts and interpretation in the age of information. London: Pelican, an imprint of Penguin Books, 2018.