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As Origens da Hermenêutica

Gusdorf: Origem da Hermenêutica

Primeira Parte - As Origens

A IDADE DE OURO DA HERMENÊUTICA ALEXANDRINA
  • A hermenêutica  , compreendida como interpretatio e exegese, remete à mensagem de Hermes   e à transferência de significação  , constituindo um   ministério da comunicação cuja tarefa inacabável consiste em desvelar a não evidência do sentido, o que leva Nietzsche   a definir a filologia como a arte   de ler  , uma erudição clássica que remonta ao século III a.C.
  • A fundação de Alexandria no Egito em 330, estabelecendo a capital cultural do Ocidente por um milênio, permitiu que o Museu e a Biblioteca ordenassem o caos através do gênio bibliotecário e da tradição   escrita, consolidando as figuras dos filólogos, gramáticos e críticos numa civilização centrada na leitura   e na escrita onde a arte da interpretação visava salvar o sentido.
  • A sacralidade pedagógica de Homero  , considerado a obra de arte total da cultura ocidental, fundamentou a constituição do cânone das santas escrituras homéricas em Alexandria, um feito excepcional do gênio humano que compreendeu a formação das lendas épicas e a fixação de um texto definitivo e invariável através da história   textual.
  • O espaço mental do Museu e a interrupção da tradição viva geraram a necessidade   de restaurar as significações perdidas e reatualizar o sentido, tarefa na qual o filólogo opera sobre as obras alheias, configurando-se como o Sofista ou o intelectual impuro, enquanto os bibliotecários de Alexandria atuavam como escoliastas, lexicógrafos e comentadores.
  • Em Alexandria constituiu-se a Paideia antiga e o classicismo, onde o trabalho e a tecnologia do texto substituíram a cultura da rua pela cultura do livro  , inventando a literatura e estabelecendo uma relação intrínseca entre classicismo e elitismo através da classificação e catalogação, culminando no palmarés das Belas Letras elaborado por Calimaco e Aristofanes como balanço do helenismo.
  • O cânone dos clássicos implica uma dogmática estética   e moral   que faz de Alexandria a terra   natal   da hermenêutica, local onde a Bíblia dos Setenta surgiu contemporânea ao cânone homérico, reunindo Filon, o Judeu, o neoplatonismo e a patrística no mesmo foco, entrelaçando a filologia clássica, a exegese sagrada, o cânone bíblico e o corpus hipocrático.
  • O declínio do Iluminismo alexandrino marcou o recuo do espírito crítico e o fim   das instituições do Museu e da Biblioteca, provocando uma transição da hermenêutica para o hermetismo  , onde a iniciação   e a gnose   passaram a prevalecer.
ADVENTO DA HERMENÊUTICA JUDEU-CRISTÃ
  • A epopeia de Alexandre abriu novos horizontes espirituais e alterou a escala da exigência religiosa, introduzindo o neologismo teologia nas obras de Platao e Aristoteles, numa oscilação entre teologia e mitologia que abrange desde a inteligibilidade cósmica da imanência estoica até o espiritualismo neoplatônico focado na transcendência e no êxtase  .
  • O neoplatonismo e o cristianismo entrelaçaram-se na tradição do Ocidente através da pregação universalista do apóstolo Paulo, gerando um sincretismo ou confusão das interpretações que resulta num politeísmo epistemológico caracterizado pela desmultiplicação do sentido e jogos de espelho, exemplificado pelo Songe de Cipião comentado por Macrobio e pela figura de Virgilio como poeta-profeta inspirado.
  • Agostinho, em sua obra sobre a doutrina cristã, consolida um sincretismo filosófico-religioso onde a tradição judeu-cristã justifica uma religião   do livro, conferindo às Escrituras e à sua leitura um valor fundamental e transformando a hermenêutica num ministério da verdade   dedicado a reencontrar a palavra atual do Deus   vivo.
  • Ocorre um defasamento entre a leitura crítica   e a exegese religiosa, dada a contemporaneidade espiritual do corpus bíblico que exige um duplo movimento de interpretação do presente ao passado e vice-versa para a reatualização do sentido, utilizando o simbolismo   para rastrear significações latentes.
  • A cabala   e seus códigos apresentam-se como a revelação da Revelação, movendo-se do literalismo à mística especulativa através da ilimitação do sentido e dos números  , enquanto a tradição judaica, após o advento do cristianismo, fecha-se sobre si mesma com o Talmude constituindo o patrimônio espiritual do judaísmo.
HERMENÊUTICA CRISTÃ PATRÍSTICA
  • O cristianismo constitui uma mutação do judaísmo na qual Jesus introduz uma nova leitura da tradição não reconhecida pela sinagoga, gerando uma divergência que isola o judaísmo, pois embora os cristãos assumam a Bíblia antiga, reabrem o Livro considerando Jesus o primeiro hermeneuta cristão cuja retroatividade no Novo Testamento desmultiplica o sentido.
  • Os cristãos viram-se obrigados ao diálogo com a tradição pagã, oscilando entre o radicalismo iconoclasta que representa um terrorismo cultural extremo e o concordato cultural da patrística estabelecido por Agostinho e Jeronimo, resultando num monoteísmo   cultural que recupera a tradição na sua totalidade   através da Paideia em Cristo   e do programa das artes liberais.
  • As dificuldades da leitura bíblica, agravadas pelo desfasamento cultural e pelos diversos modos do Livro revelado, levaram Agostinho a abordar as obscuridades da Escritura e a necessidade de um saber enciclopédico, contexto   no qual a doação   de Constantino inclui o império do saber e os mosteiros tornam-se praças-fortes do conhecimento.
  • Houve uma transferência do saber pagão para o seio da espiritualidade bíblica, visível no iluminismo cristão de Clemente de Alexandria e na mutação das coordenadas históricas por Eusebio, enquanto Origenes fundou a ciência   bíblica cristã demarcando-se da crítica alexandrina, exemplificada pela Bíblia Hexapla que, sendo a primeira poliglota, evidenciou o obscurecimento das Escrituras.
  • À questão sobre se Jesus seria o decano da Faculdade de Ciências Religiosas, sucede-se a transição da era apostólica para a idade dos doutores, impondo a necessidade de consolidação intelectual da    perante o florescimento do sentido, com Origenes definindo o novo espaço mental da exegese.
EXEGESE MEDIEVAL
  • A cultura clerical fundou-se na revelação escriturística mantendo uma suspeição legítima em relação aos autores pagãos, consolidando a Vulgata de são Jeronimo como texto recebido, fixado e sacralizado por um milênio, o que paralisou a exegese histórica e provocou o esquecimento das abundantes interpretações medievais.
  • O campo unitário das Escrituras é idealmente contemporâneo, caracterizado pela ilimitação do sentido e reverberação do Verbo, onde o Espírito sobrecarrega a Letra exigindo uma leitura na fé e para a fé que valoriza o signo, o símbolo e o sacramento na polissemia do texto, rejeitando o sentido literal em favor de uma ascese   linguística inspirada na busca   de Deus pela via dos símbolos.
  • A coalescência das leituras interpretativas superpostas revela transparências da eternidade no tempo   através de um simbolismo universal que descobre o Verbo encarnado em filigrana, afirmando a omnipresença do evento de Deus onde a história santa e a história da salvação não são explicação, mas implicação, e o mistério de Cristo é o sentido do sentido.
  • A impossibilidade de um terceiro evangelho deve-se ao fato de a encarnação de Cristo bloquear o tempo, gerando uma pluralidade de leituras que distinguem o sentido literal da história bíblica do sentido figurativo, a carne   do espírito, e o sentido objetivo do sentido edificante.
  • A doutrina dos quatro sentidos impõe-se pela finitude do intelecto   humano, dividindo-se em sentido literal, sentido alegórico, sentido moral e sentido analógico, articulando o histórico e o meta-histórico na leitura bíblica e compreendendo o tempo profético entre a antiga e a nova aliança.
  • A insuficiência do Jesus histórico torna o sentido literal anacrônico, de modo que o sentido moral transfere a interpretação para o espaço interior, a leitura mística e pietista transfigura a alma   fiel e o sentido anagógico aponta para a escatologia da Presença total.
  • O paradoxo de dizer o inefável Deus resulta no florescimento dos quatro sentidos, onde são Boaventura une retórica e numerologia e a leitura torna-se um exercício espiritual num legado cultural esquecido onde o leitor medieval se situa no presente da eternidade.
  • A celebração do Verbo num palácio de espelhos mantém a tradição da leitura edificante, dividida em lição histórica e lição alegórica, sendo que a alegorese dá nascimento à teologia dogmática que se distancia do texto escriturístico, dissociando a espiritualidade da pesquisa   intelectual.
FILOLOGIA CLÁSSICA E FILOLOGIA SAGRADA NA RENASCENÇA
  • A filologia atuou como força   motriz da Renascença ao promover a degenerescência da armadura intelectual medieval e a mutação das evidências e valores  , lançando uma nova pesquisa da verdade que decretou o fim dos quatro sentidos e o primado do sentido histórico, enquanto a Reforma rompeu a barreira da Vulgata retornando à Septuaginta e ao texto hebraico.
  • O texto das Escrituras entrou em efervescência com a renascença filológica anterior à Reforma, recuperando o modelo alexandrino das Belas Letras, encerrando o monoteísmo cultural e dissolvendo o totalitarismo cristão, permitindo que Virgilio fosse visto como evangelista e que Atenas e Jerusalém, bem   como Homero e Virgilio, fossem amados por si mesmos.
  • Atenas e Roma tornaram-se focos da elipse do classicismo reconstituído através da transferência dos estudos de Bizâncio para a Itália, emancipando a filologia como a primeira das ciências humanas e estabelecendo o novo tipo do humanista na idade de ouro dos estudos antigos, focado na busca do sentido fora de todo dogmatismo.
  • Valla operou a transferência da tecnologia filológica do profano ao sagrado, comparável a uma revolução copernicana onde as Escrituras, mesmo santas, são textos submetidos ao novo direito comum dos textos, surgindo uma nova patrística e um casamento   entre filologia e fé representado por Erasmo, a filosofia   de Cristo e o evangelismo, com prioridade para o texto e as Bíblias poliglotas.
  • A ruptura da Reforma opôs a autoridade das Escrituras à da Igreja de Roma, com Lutero como tradutor da Bíblia, tornando a filologia bíblica o objeto e refém do conflito, ao que o Concílio de Trento respondeu impondo a Vulgata e generalizando os seminários diocesanos, levando ao deperecimento das faculdades de teologia e à ascensão   do colégio jesuíta com o dogmatismo das Belas Letras.
  • A filologia foi marginalizada em terra católica e assumiu posição dominante na Europa reformada, onde a Faculdade de Teologia manteve posição central promovendo a filologia clássica, línguas orientais e exegese bíblica, especialmente na Holanda, onde ocorreu a revolução galileana na filologia.
  • Friedrich August Wolf, estudante de filologia em 1777, marcou o fim do dogmatismo das Belas Letras e definiu a Ciência da Antiguidade, publicando os Prolegômenos a Homero em 1795 que introduziram o ateísmo homérico e uma história do texto homérico, estabelecendo a autonomia da ciência da antiguidade onde a filologia clássica e a bíblica partilham a problemática da letra e do espírito das Escrituras.
A HERMENÊUTICA BÍBLICA NOS SÉCULOS XVII E XVIII
  • A exegese entre os reformados fomentou a crítica bíblica com autores como Grotius, La Peyrère e Hobbes, preparando o terreno para o Tratado teológico-político de Spinoza em 1670, que estabeleceu um discurso   do método em matéria   de exegese do documento bíblico.
  • Richard Simon, considerado o Galileu das ciências religiosas, demonstrou que o texto bíblico era demasiado frágil para fundar a fé por si só, utilizando um fanatismo crítico para justificar a autoridade da Igreja e seu magistério, o que o colocou na posição de fora da lei.
  • A pesquisa bíblica na Europa da Reforma enfrentou o fundamentalismo bíblico e o perigo da anarquia doutrinal, resultando nas variações das Igrejas protestantes e revelando a Reforma como um movimento perpétuo.
  • A distinção entre exegese e hermenêutica mostra que a exegese se contenta em restaurar o documento com objetividade, enquanto a leitura pietista é inspirada e vê na Bíblia o lugar da Palavra divina, o que levou o pietista Rousseau a opor o culto do coração   às etiquetas confessionais contra a ciência bíblica, ecoando Lichtenberg.
  • A ciência do texto não coloca em causa   a autenticidade religiosa, mas observa as sobrecargas da Revelação global como revelação do homem   a si mesmo   e restauração   da multiplicidade dos sentidos, permitindo que a hermenêutica aprofunde a polivalência do sentido do exterior para o interior e da letra ao espírito.
  • A mutação hermenêutica nas ciências humanas reflete-se nas faculdades de teologia na França desde 1808 e na problemática das traduções bíblicas entre os reformados, consolidando a Hermeneutika de 1630 como ciência do sentido verdadeiro onde a verdade é problemática e exige uma lógica do sentido e a habilitação do espírito crítico, relacionando as Luzes e o protestantismo segundo Dilthey.
  • A Bíblia, enquanto Palavra de Deus, deve ser   inteligível por si mesma, impondo a imensa tarefa da manifestação do sentido que Flacius Illyricus buscou em 1577 ao tentar reencontrar a unidade de desígnio de Deus através da análise retórica do discurso bíblico numa crítica de espírito racionalista.
  • A tradição universitária da filologia sagrada e profana nos séculos XVII e XVIII enfrentou a complexidade intrínseca do compêndio bíblico com o triunfo da razão raciocinante, visível na exegese de Christian Wolff e na elucidação racional da Escritura, bem como na retórica e lógica de S. J. Baumgarten sobre as recorrências da mentalidade.
  • Os estudos hebraicos de J. A. Michaelis em Halle e de seu filho   Johan David em Göttingen ampliaram a ciência bíblica ao estudo   da mentalidade e civilização, reconhecendo o Novo Testamento como um compêndio compósito e renovando a problemática com a hipótese do Protoevangelho, enquanto J. S. Semler abordou a historicidade da revelação e a crítica do cânone.
  • A iniciativa pietista restaurou o sentido místico com A. H. Francke considerando a conversão a chave da Revelação, seguindo uma fileria de leitura espiritual de Bengel e das Bíblias de Marburg e Berleburg, unindo sábio e crente na inspiração   de uma verdade com figura humana e componente psíquica analisada por Chladenius.
  • Ernesti apontou as ambiguidades do sentido no vocabulário e gramática, relacionando mentalidade, gênero de vida   e campo semântico, enquanto Vico defendeu a coerência interna da inteligibilidade e a análise global da realidade   humana com o retorno cíclico das formas culturais, estabelecendo que a humanidade vive num mundo   de significações e propondo uma hermenêutica da história universal.
DA EXEGESE À HERMENÊUTICA
  • A transição de Vico a Montesquieu formulou uma teoria dos conjuntos da compreensão   e a teoria dos climas com determinismo ambiental, criando uma inteligibilidade global da cultura interiorizada pelo espírito do tempo romântico e criticada por Herder e Germaine de Staël.
  • Herder criticou o progresso linear propondo outra filosofia da história em 1774, defendendo o politeísmo dos valores culturais e a reabilitação da Idade Média, onde cada época expõe a plenitude do sentido e as civilizações existem no plural, caminhando para o historicismo romântico onde a verdade é filha   do tempo e o historiador, inserido na história, adota uma metodologia da simpatia compreensiva.
  • A diversidade das visões do mundo estabelece um pré-requisito onde Herder, anti-Bossuet e anti-Voltaire  , ressalta a riqueza intrínseca da Bíblia em seus meios e mentalidades, afirmando que Deus falou a língua   dos homens e que a Bíblia deve ser   lida humanamente segundo a analogia   da humanidade, colocando a verdade em diálogo com o devir humano e desbloqueando a hermenêutica.
  • A descoberta do Jesus histórico liberto da escatologia promoveu o degelo da axiomática teológica e a restituição do relevo humano de Jesus em seu tempo, transfigurado pelos evangelistas, onde uma nova leitura dos Evangelhos realiza uma crítica diferencial e entende o Novo Testamento como produto da fé, iniciando as primeiras interrogações sobre a personalidade de Jesus.
  • A tentativa de reencontrar o Jesus anterior à Cruz levou Reimarus a tentar desmitificar a lenda   cristã através de uma análise estratigráfica do compêndio evangélico que separa o herói de suas testemunhas, apresentando o Jesus judeu e seu fracasso e o cristianismo como nascido da decepção dos discípulos e da projeção escatológica, libertando a problemática de Jesus da tradição.
  • Lessing, como editor de Reimarus, entrou no debate juntamente com Herder sobre as tradições evangélicas, argumentando que Jesus e a fé cristã são anteriores aos Evangelhos e que a Revelação muda de sentido ao reencontrar as etimologias judeu-cristãs, exigindo uma fidelidade nova onde a atualidade da fé está ligada à sua historicidade e o modo de pensar   mítico é reabilitado numa perspectiva antropológica de gênese  .

Ver online : Georges Gusdorf


Georges Gusdorf. LES ORIGINES DE L’HERMÉNEUTIQUE. Paris : Les Éditions Payot, 1988