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Encantamento

Maria Tatar: Intersecções na Obra de E.T.A. Hoffmann

Cegueira e insight: experiência visionária nos contos de Hoffmann

  • A crítica   literária e a perspectiva médica na análise de Hoffmann  

    • Heinrich Heine aconselhou outrora os críticos literários a abandonarem seus esforços de interpretação   das obras de E.T.A. Hoffmann, sugerindo que a tarefa de dissecar tais contos deveria ser   delegada exclusivamente a médicos, pois, em sua visão  , Hoffmann, tal como Novalis  , incorrera no erro   infeliz de confundir poesia   com doença.
    • Não obstante a ironia de Heine, os estudiosos literários contemporâneos documentaram a familiaridade de Hoffmann com a literatura médica de sua época, utilizando essas fontes para elucidar contos como O Magnetizador, O Hóspede Sinistro e O Voto, nos quais transes mesmeristas e estados mentais correlatos desempenham papel central no desenvolvimento da trama.
    • As principais fontes de informação de Hoffmann sobre os fundamentos médicos e filosóficos do mesmerismo incluíam David Ferdinand Koreff, Adalbert Friedrich Marcus e Gotthilf Heinrich Schubert  , três   figuras que mantiveram reputações médicas imaculadas apesar de endossarem doutrinas mesmeristas.
    • Koreff forneceu informações em primeira mão sobre pacientes e discípulos de Mesmer na França; Marcus apresentou a Hoffmann o sanatório onde realizava curas mesmeristas; e Schubert introduziu o autor   ao lado sombrio da ciência   natural, sugerindo conexões entre transes magnéticos, inspiração   poética, a lucidez dos loucos e os momentos visionários que antecedem a morte  .
    • A influência do mesmerismo estende-se para além das digressões explícitas sobre o tema, colorindo a imagética e o estilo de Hoffmann, como se observa em O Pote de Ouro, onde a linguagem   do magnetismo descreve eventos eletrizantes e estados de consciência   que Schubert associava ao transe mesmerista.
  • Cegueira  , Visão e o Princípio Serapiôntico

    • A fascinação de Hoffmann pelo mesmerismo decorre, em certa medida, de sua obsessão   por olhos e instrumentos ópticos, onde o olhar ardente de criaturas diabólicas ou os olhos sublimes de figuras celestiais exercem poderes transformadores sobre os protagonistas.
    • Instrumentos ópticos nos contos, como o espelho misterioso em A Casa Deserta ou as lentes mágicas em Mestre Pulga, não aguçam a visão humana comum, mas parecem bloquear a percepção   visual normal para abrir portais para um   outro mundo  , distinto da realidade   empírica.
    • Raios de luz   cegantes e relâmpagos de fogo   frequentemente anunciam a transição da visão ordinária para o insight criativo, como demonstrado na visão de Anselmus em Atlântida ou na experiência do leitor   em O Combate   dos Cantores, onde véus são removidos para revelar uma realidade superior através de um olho interior.
    • Ottmar, um dos Irmãos de Serapião, elogia tais visões como consonantes com o Princípio Serapiôntico, formulado por Lothar, que postula a existência de um mundo interior e a necessidade   de força   espiritual para vê-lo com clareza, utilizando o mundo externo apenas como uma alavanca para acionar essa potência.
    • O ato   criativo exige que impulsos da esfera externa animem um sensório   interno capaz de evocar espetáculos vívidos, mas o verdadeiro artista deve possuir Besonnenheit, ou serenidade, para controlar essas imagens e traduzi-las em um idioma compreensível, sob o risco de ser   estigmatizado como louco.
  • Metáforas Elétricas e a Mecânica da Inspiração

    • Hoffmann utiliza metáforas de máquinas elétricas e fios ocultos para explicar mudanças radicais de percepção, sugerindo que um choque súbito pode reconfigurar o ser interior, embora frequentemente suas personagens   femininas possuam, por si sós, corrente elétrica suficiente para carregar a atmosfera e faiscar a imaginação dos poetas.
    • Personagens como a Princesa Hedwiga, Donna Anna e Dörtje Elwerdink funcionam como musas elétricas, gerando uma luz interior que ilumina a mente dos artistas e lhes permite perceber um segundo mundo de sua própria criação  .
    • O transe mesmerista é tratado como um análogo do sonho   e um veículo para o maravilhoso, onde o sistema ganglionar de nervos usurpa os poderes do sistema cerebral, inibindo a percepção sensorial externa e ativando um órgão sintonizado com um mundo espiritual, conforme as teorias aprendidas com Schubert.
    • Existe uma fusão de atributos elétricos e magnéticos em certos personagens, refletindo a contemporaneidade dos experimentos de Galvani e Mesmer; o narrador dos Esboços Fantásticos à Maneira de Callot, por exemplo, experimenta uma espécie de sonambulismo induzido pelo olhar e pela presença eletrizante da intérprete de Donna Anna.
  • O Magnetizador e a Dinâmica de Poder

    • Os olhos de basilisco e o olhar penetrante são as características mais salientes das personalidades magnéticas malévolas nos contos de Hoffmann, ecoando superstições culturais sobre o poder hipnótico pernicioso de répteis, conforme apontado por Siegfried Seligmann em seu estudo   sobre o mau-olhado.
    • No conto O Magnetizador, a relação mestre-escravo emerge como o denominador comum das alianças mesmeristas, onde figuras como o Major e Alban exercem controle absoluto   sobre seus médiuns, muitas vezes transmitindo vulnerabilidade à influência magnética através de gerações.
    • A dominação psicológica frequentemente cede lugar ao confinamento físico ou à paralisia, exemplificada em O Hóspede Sinistro, onde a heroína Angelika se vê presa em uma teia de fogo tecida por um olhar hipnótico, uma experiência que recapitula o aprisionamento de Anselmus no vaso de cristal em O Pote de Ouro.
    • Maria, vítima da influência de Alban, desenvolve faculdades de clarividência em seus sonhos, mas permanece à mercê de uma força psíquica que a escraviza, associando lírios e basiliscos a uma presença ameaçadora, em contraste com a serpente   benévola Serpentina.
  • Natureza  , Eletricidade e Amor   em O Pote de Ouro

    • A aparição   dos olhos de Serpentina marca a transição de Anselmus de uma percepção ambígua da natureza para uma comunicação direta e extática, onde o choque elétrico e o olhar sublime dissipam as dúvidas racionais e animam o mundo ao redor com vida   jubilosa.
    • O transe hipnótico replica o estado mental propício à inspiração poética, e Hoffmann emprega motivos mesmeristas para descrever a mudança   da percepção normal para o insight visionário, utilizando o cenário do locus amoenus e a presença de uma mesmerista serpentina que, diferentemente de figuras sinistras, exerce um poder elétrico impulsionado pelo amor.
    • Serpentina herda atributos elétricos de seu avô materno, Phosphorus; o mito   de sua ancestralidade revela que a centelha de pensamento lançada no ser amado gera, simultaneamente, dor   e felicidade   suprema, uma dualidade   emocional que Anselmus experimenta intensamente.
    • Helmut Müller identifica fórmulas estilísticas recorrentes na obra de Hoffmann, como ser atingido por um raio ou ficar imóvel como uma estátua, que não são meras repetições, mas marcadores deliberados da transição para o reino da imaginação poética ou do retorno à realidade prosaica.
  • O Simbolismo   do Cristal: Prisão e Revelação

    • O arquétipo   das histórias de artistas em Hoffmann envolve uma polarização radical do eu entre a realidade burguesa e um mundo poético mental, gerando uma dor que se intensifica quando o personagem é confinado, como Anselmus no vaso de cristal.
    • Em As Minas de Falun, o cristal é associado a profundezas oceânicas e a uma massa sólida e transparente que preserva o corpo   em animação suspensa, representando um reino que, ao ser confundido com um paraíso   celestial, resulta em paralisia e petrificação.
    • O cristal em Hoffmann frequentemente mistura propriedades de fogo e gelo, funcionando como um meio de confinamento que permite ao prisioneiro vislumbrar o esplendor   de um mundo superior enquanto permanece paralisado pelas restrições da vida cotidiana.
    • A libertação dessa prisão de cristal ocorre através do amor e da    na realidade poética, permitindo que o personagem rompa as barreiras corporais, embora a crítica, como James M. McGlathery, sugira que tal libertação possa corresponder ao suicídio no mundo físico, onde a morte em Dresden equivale à vida em Atlântida.
  • Reflexão, Morte e a Verdadeira Arte  

    • O momento de reconhecimento supremo ocorre quando as revelações da mente inconsciente são experimentadas em nível consciente; Robert Mühlher observa que o pensamento destrói a percepção imediata, mas a reflexão — simbolizada pela superfície polida do pote de ouro — restaura o conhecimento   da harmonia sagrada.
    • A utopia   estética de Atlântida permanece incompatível com a realidade cotidiana, condenando o artista a viver suspenso entre dois mundos, uma contradição que Hoffmann, conforme sua correspondência com o Dr. Speyer, acreditava ser resolvida apenas no momento da morte, quando a psique liberta vislumbra a verdadeira essência de seu anseio.
    • Hoffmann mantinha uma atitude ambivalente em relação ao mesmerismo, utilizando-o tanto para descrever a exploração malévola quanto a inspiração artística; o verdadeiro poeta, segundo o ideal de Serapião, é um vidente que realmente enxerga o mundo interior e utiliza sua arte para eletrizar a audiência com essa visão.
    • Diferentemente dos magnetizadores malignos que buscam apropriação e poder, o artista, movido pelo amor genuíno — como descrito por Kreisler —, experimenta um fogo divino que ilumina sem consumir, transformando o anseio inefável em música  , retrato ou poema.

Ver online : Maria Tatar


Maria Tatar. Spellbound. Studies on Mesmerism and Literature. Princeton: Princeton University Press, 1978