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Nietzsche
Ernst Bertram: O Cavaleiro, a Morte e o Diabo
Ensaio de Mitologia
A natureza musical e a exceção visual de Nietzsche
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O homem romântico do norte, em consonância com a metafísica de Schopenhauer, busca sondar a essência do mundo ouvindo-a como música e não compreendê-la apreendendo-a como forma , o que alinha Nietzsche a uma esfera onde as artes figurativas permanecem distantes e as representações de cenas históricas ou seres humanos em movimento o deixam frio, sendo ele um espírito que admite ser "muito pouco físico".
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A descendência da Reforma Luterana manifesta-se em Nietzsche como uma privação dos prazeres alegres do olho, característicos da Idade Média, substituídos por uma saudade metafísica do ouvido e uma sede insaciável por música, o que resulta em uma indiferença notável perante a arquitetura de catedrais como as de Naumburg, Colônia ou a fisionomia arquitetônica de Basileia.
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Existe, contudo, uma única representação pictórica à qual Nietzsche permaneceu apegado ao longo de muitos anos, admirando-a como uma parte melhor de si mesmo : a gravura O Cavaleiro, a Morte e o Diabo de Albrecht Dürer , de 1513, a qual ele sentia convulsivamente como autobiográfica e como um aviso espectral onde as linhas decisivas de sua própria trajetória convergiam.
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A fascinação inicial de Nietzsche pela gravura de Dürer, influenciada pelas analogias de Richard Wagner em Tribschen e pelo presente de um patrício de Basileia, consolidou-se na passagem de O Nascimento da Tragédia , onde a imagem serve de símbolo para a solidão inconsolável de Schopenhauer, que, sem esperança mas desejando a verdade , segue seu terrível caminho imperturbável perante seus pavorosos companheiros.

O simbolismo do Cavaleiro e a coragem como virtude cardeal
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A imagem do cavaleiro encouraçado entre a morte e o diabo representa para o jovem Nietzsche a atitude ética inteira do pessimismo germânico, unindo a rigidez moral, o imperativo categórico, o "apesar de tudo " luterano e a solidão protestante do indivíduo que deve travar sua batalha pessoal armado e preparado.
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O que encanta Nietzsche na gravura é, acima de tudo, a imagem do homem corajoso, o cavaleiro da verdade que, destituído de todo fanatismo e ódio, assemelha-se a uma figura da Reforma como Ulrich von Hutten ou Martinho Lutero em Worms, permanecendo solitário e fiel ao seu caminho demoniacamente ordenado, custe o que custar.
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A coragem torna-se a medida de valor para a verdade no pensamento de Nietzsche, transformando o pessimismo em uma vontade de recorrência e Schopenhauer em Zaratustra, onde a capacidade de suportar e arriscar a verdade define o valor de um espírito, e o erro é visto não como cegueira, mas como covardia.
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A crítica tardia de Nietzsche a Schopenhauer foca-se na acusação de covardia, alegando que o filósofo se entrincheirou e não teve paixão suficiente pelo conhecimento para sofrer por ele, fugindo assim do "diabo e da morte" e carecendo da validação do sangue e da coragem luterana que certificam a doutrina.
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A impaciência luterana de Nietzsche estende-se aos seus amigos e contemporâneos, como Franz Overbeck, Erwin Rohde e Jakob Burckhardt, cuja cautela e natureza semelhante à de Erasmo de Roterdã — amando mais a paz do que a cruz — contrastam com o leitor ideal imaginado por Nietzsche: um monstro de coragem e curiosidade, um aventureiro e explorador nato.
O espírito alemão, o Grande Perigo e o Mefistófeles Germânico
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O conceito de "Grande Perigo" é essencial para a formação do cavaleiro e dos povos que merecem respeito, pois é na necessidade de ser forte, na hora da aflição e da bravura de dentes cerrados, que o espírito alemão historicamente realizou seus grandes feitos, como na Reforma.
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A única qualidade alemã que Nietzsche afirma positivamente até o fim é a audácia interior e a modéstia exterior, uma combinação de virtudes que ele associa ao espírito da Reforma, à música alemã e, paradoxalmente, à figura de Frederico, o Grande, cujo ceticismo audacioso e viril despreza mas toma posse, mantendo o coração sob controle.
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Nietzsche amalgama a audácia alemã com a adoração pelo sul em uma síntese "super-alemã" personificada no "Mefistófeles alemão", uma figura mais perigosa e audaciosa que a de Goethe , evocando Frederico II de Hohenstaufen, que cruza os Alpes acreditando que tudo lhe pertence.
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O lugar onde Nietzsche ataca mais furiosamente a germanidade e onde trava a luta mais amarga consigo mesmo é designado pelo nome de Martinho Lutero, revelando que seu antagonismo é, na verdade, uma disputa fraterna dentro de seu próprio peito, um conflito faustiano insolúvel enraizado na essência de seu próprio povo.
O problema teológico: Cristianismo do Norte versus o Sul
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Nietzsche deve ser compreendido como um fenômeno magnífico dentro da história do cristianismo do norte, onde sua rejeição a Schopenhauer e ao cristianismo institucional não anula sua afinidade profunda com a linha de Pascal e Angelus Silesius, mantendo a primazia teocêntrica da vida sobre o conceito de conhecimento.
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A figura de Paulo de Tarso sofre uma bifurcação na mente de Nietzsche: ele ataca o "disangelista" e gênio do ódio (o Paulo decadente do Anticristo), mas sua metade afirmativa permanece relacionada ao Paulo de Dürer e de Lutero, o cavaleiro robusto e sério da verdade cristã que combina sabedoria ática e melancolia nórdica.
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Tudo o que é criativo e positivo em Nietzsche tem raízes em sua herança luterana e romântica do norte, e seu auto-mal -entendido como Anticristo é uma expressão válida desse cristianismo nórdico, que desde o Heliand e as catedrais da Baixa Saxônia busca um cristianismo ativo, afirmador da vida e anti-ascético, em oposição à contemplação passiva do oriente e de Roma.
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A interpretação de Heinrich Wölfflin sobre a arte de Dürer, que infunde força e virilidade no sofrimento e na resignação, aplica-se perfeitamente a Nietzsche, cujo objetivo de vida pode ser visto como uma tentativa de reformular a grandeza humana e infundir masculinidade na paixão de seu próprio sofrimento interior.
A síntese final: Zaratustra, Lutero e o destino alegórico
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A gravura O Cavaleiro, a Morte e o Diabo atua como uma conexão elétrica entre os mestres da Reforma e Nietzsche, unindo-os na saudade profunda pelo sul e na concepção de uma santidade viril, onde "superar" é o sentido último de suas existências.
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Até mesmo a música de Johann Sebastian Bach e a Paixão segundo São Mateus evocam em Nietzsche, em seus últimos anos, a admiração pelo "apesar de tudo" e pela negação da vontade sem ascetismo, mantendo-se como símbolos de uma germanidade crua mas poderosa.
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O estilo e o ritmo de Assim Falou Zaratustra são uma intensificação barroca e uma dissolução do Antigo Testamento de Lutero, devendo à tradução luterana da Bíblia a sua força poética, e o próprio conceito de "Além-do-Homem" pode ter sua ancestralidade traçada até o homem cristão divinamente livre do individualismo protestante.
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A loucura final de Nietzsche revela, através de assinaturas como "Dionísio" e "O Crucificado", a tentativa desesperada de síntese de sua existência religiosa bipolar: uma visão de "Dionísio na cruz" que ecoa a eterna saudade nórdica por um cristianismo de vida intensificada.
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A gravura de Dürer permanece, ao fim, como a alegoria definitiva do destino de Nietzsche: o cavaleiro solitário entre eras, subserviente a ninguém, seguindo seu caminho terrível através do desfiladeiro entre a morte (conhecimento) e o diabo (tentação da solidão), sob a luz crepuscular de um "apesar de tudo" que nunca termina.
Ver online : Friedrich Nietzsche
BERTRAM, Ernst. Nietzsche: attempt at a mythology. Urbana: University of Illinois Press, 2010.