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Les Cahiers d’Hermès I

Eugène Canseliet: Cyrano de Bergerac, filósofo hermético

Dir. Rolland de Renéville

A Transfiguração Literária e a Realidade   Histórica de Cyrano
  • É forçoso admitir que a literatura operou uma metamorfose absoluta na figura de Cyrano de Bergerac, conferindo-lhe uma reputação quase universal e o favor do grande público, impondo assim uma verdade   construída sobre os tablados e no entusiasmo das multidões, fenómeno consolidado em 28 de dezembro de 1897, no teatro   da Porte-Saint-Martin  , com a estreia da comédia de Edmond Rostand; esta obra sintetizou a alma   francesa através da fantasia  , do garbo e do ideal cavaleiresco, garantindo um   sucesso delirante confirmado pela imprensa, não obstante o talento verborrágico do poeta e o seu ritmo cintilante, ainda que o primeiro ato  , repleto de imaginação e chistes sobre o nariz monumental, não revele a profundidade do Cyrano real, aquele filósofo e cientista que, longe da caricatura do espadachim grandiloquente ou do amante resignado do terceiro ato, buscava nas verdades naturais e na intuição   segura a essência do ser  , tal como o Alcofribas Nasier de François Rabelais  , pseudônimo que evoca o nariz enamorado do chumbo filosófico e o "fazer   ouro" alquímico.
Hermetismo  , Cabala   Fonética e a Simbologia do Nariz
  • A intuição poética, ao cantar o nariz gigantesco, aproxima inconscientemente o personagem do truculento cura e abstrator de quintessência, pois há uma significação   oculta no nome e na sua constituição física; o nariz monumental, longe de ser   apenas uma deformidade, era tido pelos Séléniens — os habitantes da Lua na ficção de Cyrano — como um sinal fisiológico de faculdades felizes, espirituosidade, cortesia e generosidade, sendo o tempo   um fator capital naquele outro mundo   onde quem não possui o nariz suficientemente longo para o definir é castrado; ademais, a própria assinatura de Cyrano revela-se um enigma cabalístico, onde o círculo com o ponto central dos alquimistas (o ouro ou sol filosófico) se manifesta, pois, segundo d’Assoucy, antigo amigo   do filósofo, o nome pode ser decomposto foneticamente em "Cir an O", indicando que o Mago e o Rei (Cir ou Sire) se posicionam no centro do círculo (O) para realizar seus encantamentos, reafirmando a sua ligação com a tradição   hermética e a gnose   suprema.
Dados Biográficos, Ascendência e Heráldica Alquímica
  • Contrariando a lenda   de uma origem gascã, sustentada até o final do século passado e conveniente à imagem   de bravura temerária dos cadetes de Castel-Jaloux, Savinien de Cyrano Bergerac nasceu em Paris, na paróquia de Saint-Sauveur, em 6 de março de 1619, fato verificado pelo arquivista A. Jal antes da destruição dos registros pela Comuna, sendo filho   de Abel I e de Esperance Bellanger; é na ascendência materna, especificamente na família Bellanger, que se encontram indícios da filiação de Cyrano à tradição secreta, pois as armoiries dos avós, descritas no manuscrito de Pierre Clairambaut e outrora visíveis na igreja de Saint-Eustache, ostentam símbolos   inequivocamente herméticos, como o selo de Salomão (estrela de seis pontas representando a Pedra Filosofal ao rubro e a união   dos quatro elementos) e o pentáculo pitagórico (símbolo do mercúrio   dos filósofos), além de referências à fecundidade e à oração  , sugerindo que a ciência   de Hermes era o orgulho   desta burguesia parisiense e o ambiente propício para a iniciação   do jovem Savinien.
Influências Filosóficas, Plágios e a Linguagem   dos Pássaros
  • A obra de Cyrano, permeada pela influência de Descartes e Gassendi, bem   como pela convivência com Molière — que não hesitou em plagiar cenas inteiras de O Pedante Enganado para as suas Artimanhas de Scapin —, revela uma originalidade que dispensa a apropriação indébita, apresentando passagens que poderiam figurar nos textos dos alquimistas mais renomados, como Bernard le Trévisan; observa-se uma analogia   indeniável entre a ficção de Bergerac e tratados como o Songe-Vert, onde guias veneráveis conduzem o neófito, e o uso recorrente da "língua matriz" ou universal, entendida por Cyrano mais claramente que o francês, uma alusão à língua dos pássaros e à cabala fonética que permite aos iniciados, como os companheiros de Jasão na floresta   de Dodona, compreender a voz da natureza   e a verdade científica oculta sob o véu das palavras, distanciando-se dos idiomas vulgares que apenas afastam o homem   do verdadeiro conhecimento.
O Magistério Lunar: Orvalho, Magnetismo e Fogo   Secreto
  • Nas viagens imaginárias, frequentemente rotuladas de extravagância burlesca, Cyrano expõe com precisão as operações do Grande Obra, invocando a influência capital da Lua sobre o elemento úmido e a condensação noturna (o orvalho ou posis rosis) necessária para a elevação ao "monte da magnésia"; a sua máquina   voadora, impulsionada pelo aquecimento do orvalho ou por reação, antecipa a tecnologia dos foguetes e demonstra o conhecimento do artifício ígneo e do "Azoth e fogo" preconizado pelos mestres, havendo ainda uma clara conexão com a Pirotecnia de Georges Starkey e as práticas de Eirenaeus Philalèthe, evidenciada pela figura de Elias (Elie), o profeta alquímico que utiliza uma bola de ímã purificado e um carro de aço para ascender aos céus, numa alegoria perfeita da atração entre o ímã dos sábios e o seu aço, conforme descrito na Entrada Aberta ao Palácio Fechado do Rei.
A Visão   de Cardan e a Hierarquia Metálica
  • A presença do espírito de Jerome Cardan no gabinete de Cyrano e a menção ao tratado De subtilitate não são fortuitas, servindo para introduzir a aparição   sobrenatural testemunhada por Facius Cardanus em 1491, onde sete homens surgiram, dois   nobres guiando os demais, uma alegoria transparente para o hermetista que identifica ali o ouro e a prata (os metais nobres e filosóficos) conduzindo os metais imperfeitos (ferro, cobre, chumbo, estanho e mercúrio); Cyrano apropria-se desta simbologia ao descrever os seus guias lunares como veneráveis anciãos que rejuvenescem e mudam de forma  , indicando que o ouro e a prata dos sábios nascem do astro úmido e noturno, o qual atua simultaneamente como matéria   e artífice da Grande Obra, guiando o viajante através do campo da iniciação onde se refugia o verbum demissum.
O Crapaud, a Radioatividade e a Fixação da Matéria
  • A física de Cyrano toca em intuições premonitórias sobre a estrutura   da matéria e a radioatividade, concebendo a emissão perpétua de pequenos corpos e a unidade entre espírito e matéria, ao mesmo tempo que utiliza simbolismos arcanos como o do "crapaud" (sapo), animal ligado ao "atrativo calcinado" e às operações de dessecação (do grego karpô), conforme sugere Michel Maier em Atalanta Fugiens; esta criatura, resistente à seca e amante do calor úmido, figura em episódios que, sob a capa de um bombardeio atômico ou de fúria popular, ocultam processos de fixação e purificação alquímica, onde o investigador deve invocar um Prometeu para extrair do seio da Natureza a matéria primeira, simbolizada pelo hen to pan (o Um é o Todo  ) e a serpente   Ouroboros, retomada por Marcellin Berthelot nos seus estudos sobre as origens da alquimia  .
Invenções Proféticas: O Fonógrafo e o Icosaedro Solar
  • É notável a descrição antecipada de aparelhos tecnológicos, como a máquina de livros sonoros dos habitantes da Lua, que prefigura o fonógrafo inventado séculos depois pelo poeta e cientista Charles Cros — um espírito boêmio e genial tal qual Cyrano — e que demonstra a transmissão oral e harmônica do conhecimento, dispensando a leitura   visual em favor da audição; igualmente significativa é a máquina de cristal em forma de icosaedro utilizada para a viagem ao Sol, uma referência direta ao vitríolo ou esmeralda dos filósofos (cristal verde, sal de Cristo  ), cuja geometria   multifacetada capta a radiação   solar e permite a "invisibilidade" dos Rosa-Cruz, cidadãos de Heliópolis, descrevendo a fase final da coção onde o corpo   do alquimista é retificado pela alegria que invade o sangue   e onde as cores se sucedem no ovo filosófico até a iluminação   integral, momento em que a obra física se rompe para dar lugar à contemplação   do Céu.
A Via Seca, a Imaginação e o Leite dos Pássaros
  • Cyrano de Bergerac, adepto da via seca e conhecedor das armadilhas da via longa (simbolizada pela coção de vinte e dois meses), distingue a Imaginação — rio de ouro potável e óleo de talco onde nadam a rêmora e a salamandra — da mera Memória  , atributo de pedantes e papagaios, exaltando a união dos princípios enxofre e mercúrio na realização da Grande Obra; a sua narrativa   encerra-se com a fatalidade de um acidente, a queda   de uma viga (o destino   que vitimou o filósofo aos trinta e cinco anos), mas deixa o legado de um percurso iniciático através da "Província dos Filósofos", onde o gala ornithon (leite dos pássaros), substância de insigne raridade citada pelos gregos, é finalmente sorvido, e onde a harmonia absoluta reina sob a quarta dimensão, convidando o leitor a buscar a fonte   da juventude e a verdade eterna nas páginas escritas pelo espírito mais forte do Sol.

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Les Cahiers d’Hermès. Dir. Rolland de Renéville. La Colombe, 1947