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The Beauty of the Beast: Fairy Tales as Mystical Texts in Simone Weil and Cristina Campo
Cristina Mazzoni: A Bela e a Fera, em Weil e Campo
Spiritus: A Journal of Christian Spirituality
Hermenêutica Literária e a Leitura Espiritual de Narrativas Populares
- A análise de textos literários e espirituais frequentemente incorre no que se pode denominar, apropriando-se de um termo familiar, uma deformação profissional, onde a crítica literária, habituada à exegese, tende a interpretar e por vezes sobreinterpretar narrativas, encontrando paralelos místicos mesmo em obras da cultura popular contemporânea, como a saga de vampiros de Stephenie Meyer, onde a relação entre a protagonista humana e o ser imortal reflete a dinâmica entre a alma e Deus na mística cristã, similar às experiências de Teresa de Avila.
- Simone Weil e Cristina Campo exemplificam essa abordagem hermenêutica ao tratarem os contos de fadas como textos místicos, utilizando uma atenção focada na superfície enganosamente simples dessas histórias para revelar metáforas de uma ordem de realidade superior e do amor divino , unindo a análise narrativa à exegese espiritual de modo a tratar tais contos como clássicos espirituais que revelam a verdade .
- A metodologia aplicada a essas leituras alinha-se à hermenêutica da restauração proposta por Paul Ricoeur, que visa recuperar a plenitude de sentido dos textos e promover a autocompreensão e transformação do leitor, tratando os contos de fadas como revelações do sagrado, conforme a definição de clássicos espirituais sugerida pelo teólogo David Tracy.
- Contudo, torna-se necessário aplicar também a hermenêutica da suspeita de Ricoeur, que busca desmascarar ideologias e ilusões, confrontando as interpretações seguras de Weil e Campo com a materialidade dos textos originais para investigar o que foi dito e o que foi omitido, revelando assim as complexidades verbais que podem não aceitar inteiramente as explicações metafóricas propostas pelas autoras.
Biografia , Sofrimento e a Vocação para a Atenção
- Simone Weil, nascida em 1909 e falecida em 1943, e Cristina Campo, nascida em 1923 e falecida em 1977, compartilharam uma busca por traços místicos em fontes diversas, embora suas trajetórias de vida diferissem: Weil, marcada por saúde frágil e ativismo político, concebia a criação como "decreação" (a retirada de Deus para permitir a existência humana), enquanto Campo, vivendo reclusa devido a uma malformação cardíaca, via o mundo repleto de sinais da Providência divina e adotou uma postura antimoderna e litúrgica.
- A relação entre as duas autoras é profunda, com Campo considerando Weil sua mestra e "irmã de alma" após ler A Gravidade e a Graça, presenteada por Mario Luzi; Alessandro Spina, amigo de Campo, chegou a comparar a autora à Bela e seu defeito cardíaco à Fera, sugerindo que a aceitação do sofrimento sublimava a imperfeição em beleza .
- Ambas as autoras enfatizam a necessidade da "atenção" para compreender a realidade, um processo que envolve aceitar o sofrimento físico e a angústia espiritual, conforme observado por Don Saliers sobre a estética de Weil; para Campo, a beleza e o terror são polos trágicos e conciliatórios do conto de fadas, onde o herói não se desvia da beleza irreal nem mesmo diante dos terrores físicos.
Os Contos de Fadas como Textos Sagrados e Itinerários Místicos
- A influência dos contos de fadas manifestou-se precocemente na vida de ambas: Weil, influenciada pelo conto "Maria de Ouro e Maria de Piche" dos Irmãos Grimm , via na humildade da protagonista uma metáfora para a recusa em existir e a imitação da humildade de Deus, enquanto Campo descrevia sua leitura incessante de contos na infância como uma predestinação e uma iniciação ao poder dos símbolos .
- Tanto Weil quanto Campo comparam os contos de fadas às Escrituras Cristãs; Weil afirma que o folclore contém parábolas similares às do Evangelho que precisam ser discernidas, e Campo descreve os contos como evangelhos ou uma "agulha dourada" que aponta para diferentes nortes dependendo da necessidade do leitor, funcionando como uma hermenêutica de apropriação transformadora, conforme descrito por Philip Sheldrake.
- Na interpretação de "Cinderela", Weil identifica o sapatinho deixado para trás como o traço da ausência divina e o desejo infinito pelo bem que Deus deixa na alma após sua visita; Cristina Campo, focando na versão de Charles Perrault e rejeitando simbolismos gastos, vê na história a revelação do mistério do tempo e da lei do milagre , onde a perda voluntária do sapatinho se converte em ganho espiritual.
- O conto dos irmãos transformados em cisnes é central para ambas: Weil, em um ensaio de juventude, interpreta a irmã que tece camisas em silêncio como uma figura de Cristo e da Redenção, focando na pureza e na ação do amor; Campo, por sua vez, volta sua atenção para o irmão mais novo que permanece com uma asa de cisne (baseando-se em Hans Christian Andersen), vendo nessa imperfeição a marca do místico que mantém a memória da noite escura e uma natureza híbrida e incompleta.
A Teologia dos Contos de Noivos-Animais: O Touro e a Fera
- Simone Weil privilegia o conto folclórico "O Touro da Noruega" (ou Duque da Noruega), interpretando a narrativa como a busca de Deus pelo homem , mas com uma inversão teológica radical identificada por Pasquale Accardo: a princesa representa a divindade descendente (Cristo/Deus) que se humilha e entra no palácio como serva, enquanto o duque/touro representa a alma humana que deve ser seduzida pela beleza do bem para reconhecer o divino oculto.
- Cristina Campo dedica o ensaio "Uma rosa" ao conto "A Bela e a Fera ", preferindo as versões literárias francesas de Madame d’Aulnoy e Jeanne-Marie Le Prince de Beaumont em detrimento da tradição folclórica dos Grimm, e ignorando as críticas sociopolíticas de autores como Jack Zipes , Cristina Bacchilega, Karl Marx ou Sigmund Freud que veem na história a domesticação feminina ou conflitos de classe.
- Para Campo, "A Bela e a Fera" é um conto perfeito sobre a reeducação da atenção da alma, onde a protagonista, Belinda, deve transcender o julgamento da carne e o terror para perceber a realidade espiritual; diferentemente de Weil, Campo interpreta a Fera como a figura de Deus que ama a alma loucamente, e a transformação final ocorre apenas quando Belinda aceita o monstro, recebendo a beleza dele como um acréscimo prometido àqueles que buscam o reino dos céus.
- A interpretação de Campo culmina na afirmação de que foi Belinda quem invocou o Príncipe ao pedir ao pai "uma rosa, apenas uma rosa" no meio do inverno, um desejo que Campo lê como um chamado inconsciente da alma por Deus, o objeto impossível no mundo físico.
A Hermenêutica da Suspeita e a Revelação do Folclore Oculto
- Uma leitura baseada na hermenêutica da suspeita revela que a interpretação de Campo sobre o pedido da rosa distorce o texto de Beaumont, pois a autora francesa explicita que Bela pediu a flor apenas para não parecer que desprezava o gesto do pai ou para não se diferenciar das irmãs gananciosas, e não por um desejo profundo ou místico.
- Ironicamente, a leitura espiritual de Campo, embora não sustentada pelo texto literário de Beaumont que ela tanto admirava, alinha-se perfeitamente com a versão folclórica toscana recolhida por Italo Calvino , intitulada "Belinda e o Monstro", onde a protagonista pede a rosa para expressar um desejo genuíno de felicidade , ignorando o ridículo das irmãs.
- Ainda que Campo silencie sobre influências folclóricas e demonstre aversão aos textos não literários, sua análise de "Uma rosa" acaba por incorporar a estrutura do conto popular de Calvino, realizando uma tradução produtiva e um erro de leitura do texto de Beaumont que restaura uma verdade espiritual mais complexa.
- Ao restaurar as influências não reconhecidas — o folclore de Calvino e a religiosidade heterodoxa de Weil — à leitura de Campo, percebe-se uma protagonista (Belinda) que é duplamente complexa: é a mística humana que invoca seu Amante divino (como queria Campo) e, simultaneamente, a encarnação do próprio Amante divino que, conforme a teologia de Weil, é sempre aquele que busca a humanidade primeiro.
Ver online : Cristina Campo
Cristina Mazzoni. The Beauty of the Beast: Fairy Tales as Mystical Texts in Simone Weil and Cristina Campo
Spiritus: A Journal of Christian Spirituality, Volume 11, Number 2, Fall 2011, pp. 156-175 (Article)