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Les contes de Grimm

Faivre (Grimm) – contos, por uma mito-crítica

Mythe et initiation

terça-feira 8 de julho de 2025

Se fosse preciso buscar uma estrutura não abstrata para dar conta da especificidade dos Märchen em geral e dos KHM em particular, é sem dúvida no discurso alquímico que se poderia encontrá-la. Não que nossos contos se reduzam a ele, mas como a alquimia ocidental é uma simbólica irredutível a outra coisa senão o que ela é, e se apresenta como um denominador comum do mito judaico-cristão e de vários outros mitos, ela poderia iluminar nossos contos tão bem quanto o faz a psicanálise junguiana — que por sua vez ilumina a alquimia, que por sua vez ilumina a psicanálise, etc. O importante nesse assunto é não privilegiar um discurso qualquer a ponto de lhe reconhecer uma antecedência de princípio. Ao nos atermos às semelhanças mais exteriores entre os textos alquímicos e os KHM, é evidente que um conto como João-de-Ferro (nº 136) se prestaria maravilhosamente à exegese hermetizante: reencontram-se ali as etapas principais do processo alquímico e uma simbólica dos metais particularmente transparente; até as bolas de ouro que lembram a Atalanta fugitiva de Michel Maier. Uma leitura alquímica facilitaria melhor a compreensão do simbolismo polivalente desse universo dos contos, sem dúvida porque a ciência de Hermes não é uma ciência no sentido em que a entendem a psicanálise e as outras ciências ditas humanas, e não constitui um corpo doutrinal fechado em si mesmo. Uma exegese alquímica dos KHM deveria ser tentada em breve.

Trata-se de exegese, se se quer apreender um texto o mais próximo possível de seu sentido, fazê-lo dizer o que ele quer dizer de si mesmo, por si mesmo. A leitura alquímica é parteira de sentido, as outras leituras não podem deixar de se assemelhar a grades através das quais a interpretação se aproxima mais da tradução ou do adivinhação do que da hermenêutica. Em um saboroso livrinho: Quem com seu beijo despertou a Bela Adormecida?, Iring Fetscher parodia estudos reducionistas de diversas tendências. É um “À maneira de...” três abordagens conhecidas: o método da história literária e da crítica textual; o método psicanalítico; o do materialismo histórico (e do “princípio esperança” de Ernst Bloch). O autor reproduz uma dúzia dos KHM mais conhecidos e faz seguir cada um deles por uma ou várias dessas paródias. O sucesso que esse livrinho obteve na Alemanha — quase cem mil exemplares vendidos em três anos — mostra de forma encorajadora que, apesar dos pedantes, o humor não perde seus direitos e que os KHM se defendem bem. Já Anatole France, em O Livro de Meu Amigo (diálogo sobre os contos de fadas), ironizava sobre as explicações redutoras que tendiam a ver nos contos apenas “um dialeto da mitologia”, nos verdadeiros atores de Cinderela, de O Pássaro de Fitcher, etc., simples alegorias de fenômenos naturais.

Essas paródias, essas críticas divertidas, vêm do fato de que se quis buscar em todos esses contos um sentido figurado por trás do qual se esconderia um sentido próprio ou mesmo o sentido próprio. Enquanto “o sentido próprio, e que se crê conceitual, segue sempre o sentido figurado”. Os KHM são primeiramente relatos simbólicos, e ninguém jamais provou que o símbolo é “secundário em relação à linguagem conceitual. Nada, absolutamente nada, permite dizer que o sentido próprio prime cronologicamente, e muito menos ontologicamente, o sentido figurado”. No máximo, pode-se questionar validamente as razões pelas quais esses relatos simbólicos se multiplicam em tal época e não em outra. É bem possível que os contos do tipo KHM tenham sido no Ocidente o meio de preencher o vazio mítico deixado por uma religião de salvação que transforma em mistérios os elementos do mito e não é suficiente para resolver os problemas da vida cotidiana — o astuto herói do conto sempre ajuda o destino (ver o que P. Mathias93 diz a respeito). Cada vez que uma religião se “teologiza”, torna-se abstrata, assiste-se a um recrudescimento dos relatos maravilhosos — contos de fadas ou Lenda Áurea de Voragem — e da teosofia. O formalismo da religião talmúdica favorece, por reação, o florescimento de toda uma literatura cabalística nos séculos XII e XIII, o do luteranismo suscita na Alemanha a reação teosófica de um Jacob Böhme ou de um Quirinus Kuhlmann.

Uma das funções do conto seria então transformar um universo que se tornou mais ou menos unidimensional, devolvendo-lhe a mobilidade, a pluralidade do “multiverso” original, o dos grandes mitos tradicionais. Ao contrário da novela, que encerra uma parte do mundo conferindo às coisas uma figura única e particular, o conto absorve este por inteiro, preservando a generalidade e a diversidade do que o compõe. Arnim queria, no fundo, transformar os contos em novelas, dar-lhes sua marca própria, criando assim uma forma que seria como a atualização do conto — da qual Isabel do Egito permanece um exemplo característico —, enquanto, como gênero literário, o conto se move inteiramente em uma forma de potencialização e se caracteriza por uma extrema labilidade. O universo plural do conto corresponde a uma maneira de viver o mito — a única, pareceria, harmonizante, individuante, criativa. Porque o “mito” não se resume às três categorias enumeradas acima, ele é um dado irredutível e geral ao qual se reduz toda expressão organizada, figurativamente estruturada, do imaginário humano. Nessa perspectiva, os mitos ditos completos (os trípticos em questão) e os relatos heroico-místicos (do tipo “Perseu”) remetem, da mesma forma que os contos populares, à noção geral e antropológica de “mítico” no sentido em que a mitocrítica o entende: eles explicam o resto, sem serem eles próprios redutíveis a outra coisa senão o que são. Mitos e contos, no sentido de “tipos de escrita”, aparecem então como formas de expressão nas quais o mítico se apresenta em estado quase puro — uma pureza sempre assintótica, já que passa necessariamente por um meio de expressão.

“O verdadeiro sintoma do mito e do conto, ou o que permite desvendar sua estrutura”, Gilbert Durand Durand Durand, Gilbert (1921-2012) o vê no isotopismo — palavra que ele prefere a “isomorfismo”, cuja raiz lhe lembra demais a vacuidade da forma —, ou seja, a igual distância do diacronismo, integrando mito e conto ao gênero narrativo, e do sincronismo, assinalando os temas importantes de um e de outro. Pode-se aproximar dessa concepção o trabalho intitulado Introdução ao Mitodrama, no qual o psicólogo Yves Durand Durand Durand, Gilbert (1921-2012) conclui de observações muito concretas que “o Imaginário humano tende a organizar uma estrutura existencial ou mítica sobre um modelo dramatúrgico”, e isso, diz ele, qualquer que seja a natureza do microuniverso envolvido: “Pode-se, assim, legitimamente supor que os pontos de ancoragem do imaginário comportam uma função essencial de ordem dramatúrgica”, que consiste em transformar qualquer um dos elementos do Cosmos — gesto, animal, planta, objeto, signo, etc. — em um “actante funcional cujo papel é participar da Representação dinâmica do Espaço-Tempo vivido”. O sujeito encontra então sua unidade “em uma coerência mítica, e não em um eu megalomaníaco”. Uma formalização como a proposta por Yves Durand Durand Durand, Gilbert (1921-2012) tem pouca relação com o puro formalismo e apresenta a vantagem de não deixar escapar a própria substância do que se estuda, ou seja, do que jorra, e que pode ser água viva. Evidentemente, em uma tradição escrita ou oral como em um texto literário, o mito não está necessariamente presente para quem fala ou escreve. Mas, Charles Baudouin lembrava, “Tudo se passa como se o mito subisse espontaneamente das profundezas do inconsciente”, agarrando-se ao “conteúdo manifesto”, determinando nele incidências e incidentes que são aparentemente acessórios mas que “só recebem seu sentido de uma referência ao mito”. É que a análise antropológica mostra peremptoriamente a primazia — em todos os sentidos do termo — do mito. E como Gilbert Durand Durand Durand, Gilbert (1921-2012) afirma sem ambiguidade:

Que se queira ou não, a mitologia é primeira não só em relação a toda metafísica, mas a todo pensamento objetivo, e é a metafísica e a ciência que são produzidas pelo recalcamento do lirismo mítico. Longe de ser um substituto desvalorizado da assimilação diante de uma adaptação defeituosa [...], o simbolismo nos apareceu como constitutivo de um acordo, ou de um equilíbrio — o que chamamos de “trajeto” — entre os desejos imperativos do sujeito e as intimações do ambiente objetivo.

Esse “trajeto”, Jean Burgos também o vê no Imaginário concebido como “esse lugar de troca entre o mundo e nós”, lugar que não é um refúgio que nos desvia do real, mas “o próprio real”, pois é “esse mundo incessantemente em movimento, encruzilhada de trocas entre forças subjetivas e forças objetivas”. Desse encontro de forças centrífugas e centrípetas, ao mesmo tempo opostas e complementares, “nasce uma nova realidade” que não é redutível nem a um nem a outro desses dois movimentos. O reconhecimento dessas forças implica a necessidade de considerar “a obra poética não mais como documento nem como objeto de estudo, mas como organismo vivo”. Por outro lado, Gilbert Durand Durand Durand, Gilbert (1921-2012) distingue três grandes “estruturas antropológicas do Imaginário”: a heroica ou diairética, a mítica e a noturna sintética, e Jean Burgos, três categorias fundamentais que são tantas respostas à angústia ligada à finitude: uma de revolta e conquista, outra de recusa e recolhimento, a terceira de reconciliação e progresso; nesta última se encontrarão os esquemas cíclicos, dramáticos, “cristalizando uma temática da relação, da recensão, da germinação, da frutificação, do retorno, da alternância, da superação”, de onde séries de imagens “organizando-se segundo modos de enfrentamento e superação dos antagonismos”, o que se manifesta “tematicamente por uma progressão baseada na coincidência dos contrários”. Ora, o “noturno sintético” segundo Gilbert Durand Durand Durand, Gilbert (1921-2012) e a “reconciliação” ou “progresso” segundo Jean Burgos, definem uma estrutura temática que se aplica exatamente aos KHM, e igualmente ao discurso alquímico, e de uma forma geral aos relatos iniciáticos. Como, à semelhança de todo texto literário, os KHM são ao mesmo tempo um produto e uma produção, tem-se o direito de recusar a seu respeito, assim como Jean Burgos o faz para toda obra, a abordagem daqueles que neles buscam “apenas o reflexo do mundo exterior em um dado momento” — redução sociologizante ou marxista — ou que, mesmo junguianos, neles veem apenas o produto de imperativos biopsíquicos; de recusar também a abordagem puramente filiacionista, ou historicista, que se esforça para desvendar o sentido do texto enumerando todos os seus antecedentes históricos; mas ainda aquela que vê no texto o simples funcionamento de uma linguagem, “a manifestação de uma estrutura abstrata da qual ela é apenas uma das realizações concretas possíveis”. Dito isso, nenhuma dessas abordagens, nenhum desses “sentidos múltiplos”, devem nos ser estranhos, pois apresentam a vantagem inestimável de nos lembrar incessantemente, verdade muitas vezes esquecida, que “o mundo do logos [...] não é independente, por mais inovador que seja, do cosmos e do antropos”. Depois de aplicar a cada uma dessas grades aos contos, pode-se inverter a direção do trabalho e “colocar-se em condições não de extrair um sentido, mas de dar sempre um acréscimo de sentido” (p. 8”·). Uma leitura junguiana não poderia de forma alguma, a meu ver, incorrer a priori na censura de fazer um KHM dizer o que nele não se encontra, desde que essa leitura não se apresente como exaustiva fora de seu próprio domínio. Trata-se de “restaurar a função simbólica da imagem”, ou seja, de reafirmar a multiplicidade de suas virtualidades semânticas. O mito está na encruzilhada dessa tripolaridade que constituem as tendências histórica, psicanalítica e formalizante; se cada uma delas naturalmente tende a se afastar indefinidamente, de forma centrífuga, do centro do triângulo, uma retomada dessas três direções em um sentido centrípeto permite retornar ao sentido e apreender melhor a cada vez sua especificidade.

Assim, evita-se perder-se em falsas abordagens, como a que consistiria em querer resolver a questão da intenção do anônimo que teria inventado um conto. Não se pode absolutamente precisar o que ele teria querido dizer. Pois não se trata de querer dizer algo: a linguagem monocromática, ou bicromática, dos KHM, é relativamente pobre na explicação; trata-se de transmitir intencionalidades que não pertencem inteiramente nem ao consciente nem ao inconsciente e que se traduzem sob forma de situação. Apesar de certa tendência lacaniana que desejaria que tudo passasse pela linguagem e que não leva em conta nem os suspiros nem os silêncios, ou seja, tudo o que faz a música, parece que o importante é a situação mais do que a palavra, como se as intencionalidades mais interessantes fossem também as menos explícitas. O talento, o não-dito, e na psicanálise os silêncios, as hesitações, são provavelmente tão importantes quanto a explicitação pura e simples, já que são eles que criam a melodia. Ora, segundo uma observação de G. Durand Durand Durand, Gilbert (1921-2012) , o lacanismo leva em conta apenas o que cria a escrita musical nas pautas (ver p. 31”). A descrição das situações é uma forma de silêncio; como em um certo teatro onde o não-dito ocupa um grande lugar, desfruta-se melhor desses contos pela audição do que pela leitura solitária, pois ouvir supõe a implementação do dispositivo que permite a atualização do relato.

Na banalidade do conto, as crianças reconhecem menos uma fala do que intencionalidades subjacentes que compõem uma situação, e fazem questão que esta permaneça estereotipada. O observador que se pretende objetivo vê o estereótipo como uma casca, algo banal, mas, assim que se dedica à situação, às intencionalidades subjacentes, o relato evoca imediatamente uma quantidade de coisas para cada um. A criança sabe muito bem de antemão o que sua contadora vai lhe dizer, mas ela sobretudo exige ouvi-lo novamente, em uma espécie de cumplicidade das intencionalidades; e o que a interessa é sem dúvida desfrutar a cada vez de forma diferente da maneira como o fôlego, frequentemente diferente de uma sessão para outra, ritma e anima um mesmo discurso. Ora, como leitores, só dispomos desse discurso na forma escrita, como uma partitura musical cujo destino inicial era, no entanto, ser tocada. Assim, temos com demasiada facilidade uma ótica de bibliotecário quando abordamos o domínio das tradições orais e das civilizações sem escrita. Recentes programas de televisão dedicados a autênticos contadores populares vivos mostraram que essas pessoas são todas personalidades pouco banais, cuja apresentação física e maneira de falar fazem lamentar ter que desfrutar de certos contos de uma forma apenas livresca. Ainda falta a esses programas poder nos colocar em corressonância com esse contador, de criar uma situação mágica. Enfim, somos diferentemente receptivos a um mesmo conto de acordo com as horas do dia, ou os dias, ou as estações do ano e da vida. Tantos elementos intervêm que a análise estrutural não tem alcance sobre as intenções, cuja existencialização se sobrepõe à formulação explícita.

O formalismo estruturalista corre o risco de privar as estruturas de sua necessidade interna, quando essas necessidades não são formais, mas impulsionadas pelo dinamismo das imagens e das situações. Podemos buscar o princípio de pertinência de que precisamos para compreender os KHM, como qualquer narrativa, nessa intenção consciente ou inconsciente à qual corresponde a imagem. Existem necessidades organizadoras, uma troca constante entre uma forma de estabilização e a efervescência de imagens que revestem as narrativas, mesmo as mais banais. É preciso, portanto, evitar operar sem levar em conta os conteúdos, as sequências qualitativas, e compreender o conto essencialmente no nível da imagem e da melodia. No nível da imagem, porque uma estrutura, para ter sentido, não pode ser uma figura e nada mais; apenas as imagens explicam as imagens, e por elas nos reconciliamos conosco mesmos muito melhor do que através da linguagem. No nível da melodia, pois com os junguianos pode-se ver nos KHM chaves de processos de individuação. Individuar-se é ver que existem polaridades às quais é preciso consentir, que convém assumir de forma criativa; ora, não se dirige a criatividade, relança-se-a incessantemente. Daí esse aspecto desconexo das sucessões de motivos nos contos, que serve para reativar, retomar, o esquema inicial. Se o mito é reiteração rítmica de uma gênese, da “história” de um devir, o conto também, porque não é isolável de outros contos semelhantes — um conto, no fundo, sempre faz parte de um corpus oral ou escrito, de um repertório ou de uma antologia —, repete, como faz a música, sempre o mesmo tipo de história, com cada vez algumas variantes. E dentro de um mesmo conto, outra forma de repetição vem relançar e reativar o esquema inicial, assim como nos níveis escalonados de um mesmo percurso iniciático, ou na linguagem poética inflada de uma repetição com valor semântico sempre diferente.

Jean-Pierre Duport observou que os contos podem aparecer como um verdadeiro sistema informativo; há a palavra forma em informação. O conto é extremamente estilizado, a ponto de o poder da forma — pensem na pobreza de suas cores — parecer capaz de evacuar a beleza, que seria, na verdade, segundo René Thom, um ardil da natureza para evitar que compreendamos. Esse tipo de narrativa apareceria como uma regulação de tipo metabólico, ilustrando a proposição segundo a qual os efeitos têm influência sobre suas causas, o que também parecem sugerir o aspecto desconexo da sucessão dos motivos, uma diversificação sempre em andamento, mas isenta de complexificação, a informação gerada pela impregnação, um aprendizado buscado pela repetição, e o fato, por fim, de que o ouvinte pede para ouvir outros contos.


FAIVRE, Antoine. Les contes de Grimm. Mythe et initiation. Paris: Lettres modernes, 1978, p. 7-14.

Neste estudo, sem outras precisões, todas as citações apresentadas em francês de textos estrangeiros não citados a partir de uma versão francesa editada são traduzidas pelo autor do estudo. O mesmo se aplica aos títulos e excertos dos Contos de Grimm. Os números que seguem os títulos dos Contos remetem à numeração proposta pelos próprios irmãos Grimm, tal como ainda pode ser encontrada em todas as edições completas em alemão. A sigla KHM, sempre utilizada pela crítica, é a abreviatura do título da coleção Kinder- und Hausmärchen.