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Meyrink – "O Golem" e a Cabala

terça-feira 23 de julho de 2024

GUSTAV MEYRINK Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) — O GOLEM (MeyrinkG)

Apresentação de Isabel Hernández da versão em espanhol

A ação de O Golem não tem como pano de fundo apenas as interioridades do gueto judeu de Praga com suas lendas, mas se orienta de forma muito clara em sua progressão em direção aos diferentes níveis da doutrina secreta judaica da Cabala. Isso porque a Cabala funde ideias ocultistas e pensamento oriental e, através de um complexo simbolismo de números e letras, tenta justificar o homem como criador. É como demonstração dessa capacidade demiúrgica que surge o golem, com o qual o adepto pretende demonstrar que alcançou a posição mais elevada a que pode aspirar em sua existência, apenas um nível abaixo de Deus. Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) retira diferentes elementos da Cabala, os interpreta e os contamina com outros mitos, como o da fecundação da alma, e lendas, muitas das quais circulavam pela cidade de Praga. Isso lhe custou não poucas críticas por parte dos puristas e daqueles que viam no texto uma fusão irracional das diferentes teorias que Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) interpretava nele à vontade, sem se ater à lógica. E é que, na realidade, o golem representa neste romance a possibilidade de alcançar um nível superior de conhecimento que só é possível conseguir graças à identificação do protagonista com seu duplo, com a figura da lenda que, no romance, supõe o confronto de Pernath com a parte submetida de sua existência psíquica. Este caminho já está prefixado na Cabala, onde aparece representado pela figura de um losango que se estende para o alto.

Muitos são os elementos e conceitos ocultistas e religiosos que aparecem ao longo de todo o romance com a única intenção de resolver a crise em que o protagonista está imerso. Assim como se pôde verificar com a lenda do golem, o uso que Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) faz das diferentes fontes ocultistas que inclui em seu romance é muito livre, embora se depreenda dele os muitos conhecimentos que o autor tinha não apenas das diferentes teorias ocultistas, mas também das filosofias orientais e sociedades secretas, como a Cabala (na descrição da fecundação da alma e do hermafrodita, pois se afirma que existe uma diferença de sexo entre as almas e um ser superior que deve conter em si tanto o princípio masculino quanto o feminino), o culto egípcio a Osíris (no personagem de Miriam) ou a doutrina hindu da redenção, que para o romance tem um valor fundamental, pois sobre ela se assenta na realidade o processo de reencontro com o próprio eu do protagonista. A redenção, tal como apresentada no romance, é alcançada quando o eu do indivíduo se liberta de tudo o que é terreno e consegue viver em perfeita harmonia com o resto do mundo. O caminho para essa redenção só é possível, na opinião de Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) , graças ao conhecimento e ao saber, aos quais se chega unicamente através das dolorosas experiências que é necessário viver na existência terrena. Nesse sentido, antes de encontrar a redenção, Pernath terá que suportar as penas terrenas (a perda das lembranças, a falta de pátria ou a prisão).


O tarô também desempenha um papel nada insignificante na obra, especialmente a carta do Mago, que Pernath encontra no chão iluminada pela luz da lua que penetra na fantasmagórica sala onde ocorre seu terceiro encontro com o golem. Esta carta representa a letra hebraica Aleph, através da qual se interpreta a dualidade do terreno e do supraterreno, do inferno e do paraíso, que não deixam de ser, na realidade, representações da mesma coisa. As raízes de tal interpretação também estão presentes na Cabala, segundo a qual o mundo visível é simplesmente um reflexo do invisível. Também a carta do Enforcado tem um significado especial no romance: nela podem ser reconhecidos os dez elementos nos quais, segundo os princípios da Cabala, pode ser dividida a trindade do ser divino, da qual Deus se serve para descer à terra. Quando, após o último encontro com seu duplo, que lhe aparece na forma de um hermafrodita com coroa, representando o nível máximo da experiência, Pernath tenta fugir da casa em chamas, e a corda, com a ajuda da qual pretende descer, se parte, o protagonista fica precisamente nessa posição, cumprindo assim a profecia de Laponder, segundo a qual, ao formar essa figura, ocorrerá a passagem definitiva de Pernath para uma existência superior.

Mas as referências não terminam aqui. Também podem ser encontradas no romance referências evidentes à ideia neoplatônica dos corpos astrais, aqueles que após a morte física são levados à tumba como espírito ou hálito dos ossos (Habal Garmin) para poder retornar no dia da ressurreição. É precisamente neste corpo astral que se manifesta o espírito de cada indivíduo. E também podem ser encontradas alusões a um grupo ocultista, provavelmente uma loja judaico-maçônica da qual Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) foi membro no início do século, e cujo nome aparece escrito no peito de Pernath: "Chabrat zereh aur bocher". Seu fundador, Jacob Frank (ca. 1720-1791), considerava-se o Messias, e no romance pode ser encontrado um fio que conduz da concepção do autoconhecimento definida por Frank, até a concepção do duplo desenvolvida nele por Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) , através de cuja mediação o protagonista conseguirá encontrar-se com seu próprio eu.

O golem é, portanto, o duplo do protagonista Athanasius Pernath, com cuja única ajuda ele pode chegar ao autoconhecimento e à redenção. O golem representa, portanto, a personalidade oculta de Pernath, as facetas esquecidas e destruídas de sua identidade. Devido a um tratamento com hipnose que deveria curá-lo de sua loucura, o lapidador de gemas perdeu todas as lembranças de seu passado e, com elas, praticamente a totalidade de seu próprio eu. Os encontros com o golem se tornam para Pernath experiências arrepiantes, que o confrontam com a personificação de uma parte desconhecida de seu eu e que precisamente o impulsionam a buscar esse eu interior que não conhece. Ou seja, para Pernath, o golem deixa de ser uma figura temível para se tornar um simples duplo, que já não conserva um único traço da primitiva figura da lenda.

Daqui procedem, portanto, as visões alucinatórias extraordinariamente simbólicas, as experiências oníricas que arrastam o protagonista a um mundo de sensações confusas e dilacerantes que mantêm o leitor constantemente em estado de alerta. E é precisamente o conhecimento da Cabala que ajuda a compreender algumas passagens do texto, como por exemplo o fato de o livro de Ibbur, da fecundação da alma, que um estranho personagem entrega a Athanasius no início do romance ter um significado destacado como explicativo do enredo, dado que os estudiosos cabalistas consideram essa fecundação da alma como a posse benéfica do corpo de uma pessoa pelo espírito de outra como via para chegar a um estado em que os dois são um: isso e não outra coisa é o que precisamente acontece com Pernath. No romance também se fala do Zohar, o Livro do Esplendor necessário para estudar a Cabala, do Habal Garmin, e das cartas do tarô onde o Mago, o símbolo do irracional e do inconsciente, assume um papel preponderante. Um jogo de identidades, em suma, no qual o protagonista se encontra e reencontra a si mesmo ao longo de toda a obra.


No que diz respeito à simbologia, o romance está repleto de imagens simbólicas do começo ao fim. Entre as mais significativas, ou marcantes, está sem dúvida a imagem de Pernath ao cair do telhado e ficar precisamente de cabeça para baixo, na mesma posição do Enforcado do jogo de tarô. Essa carta também é chamada de "a prova" ou "o marinheiro fenício afogado" e sob ela se esconde uma antiga prática alquimista. A carta mostra um jovem pendurado pelos pés em uma árvore em forma de T, cujo rosto tem uma expressão de paz, de libertação. A tradição mística cristã afirma que Pedro foi crucificado de cabeça para baixo por vontade própria, para não se igualar a seu mestre, e as sagas germânicas também registram o fato de que Odin, para conseguir a iluminação e o dom da profecia, ficou pendurado de cabeça para baixo por nove dias na freixo perene Yggdrasil, a árvore da vida, cujas raízes e galhos mantinham unidos os diferentes mundos. O fato de estar pendurado de cabeça para baixo era para os alquimistas um meio para a purificação, para conseguir se livrar do pensamento limitado dos humanos, embora a ideia de fundo fosse na realidade que diferentes partes do esperma poderiam assim chegar à cabeça e conseguir dessa forma uma amplificação da consciência. No tarô, a árvore em forma de T simboliza o signo egípcio Ankh, um símbolo da vida, assim como a letra hebraica Tau, com o que através da metáfora de números e letras se relaciona diretamente com a Cabala. Desse modo, o Enforcado encontra-se no limite entre ambos os mundos e marca seu caminho invertendo as crenças e as experiências e direcionando-as para um despertar espiritual.

Em seu romance, Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) soube unir a tradição da lenda com a novidade formal que supunha então a arte expressionista, na qual o mundo onírico, centrado na realidade interior do personagem, atingiu sua máxima expressão, a ponto de a magia, a simbologia e os sonhos deixarem em segundo plano a narração de fatos objetivos e externos. Também nisso é possível ver como Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) foi do começo ao fim um filho de seu tempo, influenciado não apenas pela corrente de espiritismo proveniente da América, mas também pela subversão da realidade e o racionalismo consciente da ciência e da arte que dominaram o pensamento daqueles anos, assim como a vontade de compartilhar sempre com seus contemporâneos o desejo de trazer à luz a dimensão oculta do desconhecido.

No romance, o golem perde, portanto, seu autêntico significado. Aqui já não é o ser artificial, criado a partir do barro, mas o conceito se torna uma metáfora que só é usada de forma descritiva, indicativa, como explicação de determinados fenômenos. O golem de Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) não é mais do que o veículo por meio do qual se hão de cumprir as duas funções pretendidas por ele ao escrever este romance: 1. representar o caminho para a doutrina da salvação cabalística, e 2. representar o espírito abstrato do judaísmo. Ambos adotam sua formulação concreta na figura do golem, ou, o que é o mesmo: o golem representa, por um lado, o gueto como tal e, por outro, o conjunto de todos os indivíduos que vivem nele, ou seja, cada um dos indivíduos em si.

A ação em si também se desenvolve em dois níveis em correspondência com a estrutura bimembre do texto: o sonho e a realidade. O protagonista é um indivíduo inominado que se entrega a um sonho e, inspirado pela leitura da biografia do buda Gotama, incorpora nele a vida do lapidador de gemas Athanasius Pernath, cuja existência em si mesma é na realidade um conglomerado de sonho e realidade. Ou pelo menos é assim que se apresenta ao leitor. O sonho se torna assim um recurso estilístico, com a ajuda do qual é possível dar saltos no tempo sem ter que legitimá-los do ponto de vista da técnica narrativa.

Como consequência deles, o romance aparece envolvido em uma atmosfera onírica e angustiante, onde se misturam o visível e o invisível, o sonho e a realidade, em uma esfera na qual Pernath se esforça para superar o estágio do material para alcançar assim o reino do espiritual. Embora possa parecer o contrário, o resultado é uma obra fascinante, de uma confusão caótica, cercada por uma atmosfera inimitável, com um final mais do que surpreendente, que só pode cativar a imaginação do leitor. E isso se deve certamente ao fato de que o golem se ergue nela como uma figura de duplo significado: por um lado, representa o duplo do protagonista, Athanasius Pernath; por outro, a consciência coletiva do gueto, que anuncia a guerra e a destruição. Na obra de Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) , o golem é, portanto, um duplo, como em muitas outras obras da tradição literária que desenvolvem o tema, mas um duplo de características bem diferenciadas, pois aqui é a personificação da morte e do passado, ou dito de outra forma, a força que consegue despertar o interior do protagonista. Sendo assim, esta figura lendária simboliza para Pernath o subconsciente que se confronta com ele na forma de seu próprio eu, fazendo com que venha à luz definitivamente tudo aquilo que não pode viver nem morrer: as lembranças ocultas de sua juventude. Ao vestir as roupas do golem, o protagonista aceita o desafio e decide enfrentar de uma vez por todas seu subconsciente para chegar definitivamente ao seu próprio eu.


Em qualquer caso, o golem já não é, como no século XVI, uma ameaça para os indivíduos no sentido físico, mas sim um perigo individual em um nível puramente psíquico e cognitivo. A figura do duplo manifesta-se, portanto, unicamente em sua interdependência com o original a que responde, o que problematiza de forma extrema a relação do protagonista com seu entorno, pois somente no final os três personagens que agem independentemente, Pernath, Charousek e Laponder, demonstram ser uma só pessoa. Pernath, o lapidador de gemas, conhece no decorrer da ação o estudante Charousek, que lhe conta ser filho ilegítimo do negociante de antiguidades Aarón Wassertrum, um homem tão rico quanto miserável, que, após o nascimento de Charousek, não quis mais saber nada dele nem de sua mãe. Pernath é preso e encarcerado por uma calúnia de Wassertrum e lá conhece um estuprador assassino, Amadeus Laponder, que lhe serve de médium para contatar da cela o rabino Schemajah Hillel e sua filha Miriam, a quem Pernath idolatra. A divisão da personalidade do personagem em três permite que o protagonista possa, por sua vez, estabelecer uma divisão de determinados níveis sensoriais que o levem a viver uma existência própria em seu subconsciente e seja nele que desenvolva, portanto, a figura de um duplo.

Laponder, por sua vez, cumpre uma função importantíssima na obra, pois é ele quem explica a Pernath o significado do sonho que este tem dentro do sonho: Laponder seguiu o caminho da morte ao aceitar os grãos e levar com isso para sua alma as forças mágicas, sobre as quais não tinha nenhum poder; se Pernath tivesse rejeitado a oferta, o caminho para sua amada teria se fechado para sempre, mas, ao jogá-los no chão, fez uma chamada à preservação, o que indica a possibilidade de uma união em um nível superior da consciência, que se antecipará à sua morte com a visão de um quarto resplandecentemente iluminado.

Não se pode ignorar, nesse sentido, a estruturação tripartida dos personagens do romance, assim como o fato de que as três fases pelas quais passa o processo de evolução do protagonista remetem a Paracelso, a quem o próprio Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) considerava o maior ocultista da Europa, que afirmava que o homem era um ser tripartido dados os elementos que o constituíam: um material, seu corpo; um etéreo, sua mente; e um divino, sua alma. Mas três são também, segundo a Cabala, os estágios pelos quais o homem deve passar até chegar à redenção para poder alcançar o estágio superior a que o homem pode chegar e ser admitido na divindade. Seguindo seus princípios, no homem se manifestam três elementos que, segundo o platonismo, se encontram no âmbito do corpo, da alma e do espírito puro, uma ideia que aparecerá também posteriormente nos preceitos de maçons e rosacruzes, com os quais Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) manteve também um estreito contato.

Em suma, o três se constitui no romance como princípio de estruturação formal, pois três são também os grupos de três personagens que cristalizam o transcorrer da ação: Zwakh, Vrieslander e Prokop, os colegas de Pernath; as três mulheres, Rosina, Angelina e Miriam, e por último Pernath, Charousek e Laponder que, como dito, representam três facetas da personalidade dividida do protagonista. No caso dos três primeiros, pode-se observar uma clara relação com o golem em correspondência com os distintos graus do conhecimento e, consequentemente, da Cabala. Zwakh só pode ser visto na posição do golem, Pernath luta com ele e Hillel o supera. Para poder compreender isso, é necessário partir da concepção do golem tal como se define no romance, isto é, como uma figura modificada para um fim concreto e não como o homúnulo de barro da lenda.

Todos os personagens que aparecem na obra estão direta ou indiretamente relacionados com o golem, o personagem central. No gueto, todos conhecem sua história e alguns deles até tiveram uma relação especial com ele: indivíduos que o encontraram frente a frente (Zwakh, a esposa de Hillel, Pernath) ou que sabem muito sobre sua existência (Hillel e Laponder). À margem da ação aparecem Rosina, Jaromir, Loisa e outros personagens característicos que contribuem para formar o ambiente do gueto, como Vrieslander e Prokop. Na narração que está dentro do marco, podem-se distinguir também dois níveis narrativos: as aparições do golem que Pernath vive e os planos de vingança de Charousek na pessoa do negociante de antiguidades Wassertrum. Nesse plano também se inclui o doutor Savioli e, como Angelina tem uma relação com ele, ela se encontra também no centro do alvo. Tanto Angelina quanto Charousek confiam a Pernath seus temores e tudo o que tem a ver com a história que deu origem a esses planos de vingança. Por outro lado, Aarón Wassertrum, o negociante de antiguidades, trama algo contra o casal de adúlteros, um acerto de contas pessoal. Por sua vez, Charousek suspeita que Wassertrum é seu pai, o homem que fez sua mãe infeliz, e lhe professa um ódio atroz ao qual só a morte pode pôr fim. Unicamente com seus amigos Prokop, Zwakh e Vrieslander, Pernath experimenta alguns momentos de distração, que, em qualquer caso, duram pouco, pois erroneamente ele se vê envolvido em um crime pelo qual é levado à prisão. No entanto, e de uma forma que poderia quase ser qualificada de expressionista, movimento no qual suas obras muitas vezes foram incluídas, Meyrink Meyrink Meyrink, Gustav (1868-1932) deixa muitas explicações sem dar e os personagens da história narrada dentro do marco agem no romance de forma livre e autônoma, quase espontaneamente, o que, evidentemente, leva a certa confusão argumental da qual resulta uma leitura um tanto irregular que varia tanto na intensidade quanto no tom da narração. Todos eles, em suma, não são mais do que emanações de uma e a mesma consciência e do estado em que o autor encontra um último refúgio que lhe permite isolar-se do mundo exterior: o subconsciente, o sonho.