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Le Philosophe et les sortilèges
Clément Rosset – Anfítrion
sexta-feira 1º de agosto de 2025
Numa passagem particularmente interessante do Livro II do Seminário, dedicado ao Anfítrion de Plauto e de Molière, Lacan aborda o tema do duplo, que está profundamente ligado, tal como o do extraterrestre, à metafísica considerada como um saber de outro mundo. Estas páginas são um modelo de análise ilustrada, quero dizer, desta forma, em que Lacan se destaca – como no seu comentário a A Carta Roubada de Edgar Allan Poe Poe Poe, Edgar Allan (1809-1849) –, de explicitar temas abstratos pela comparação com uma narrativa literária que o ilustra e o confirma linha a linha: aqui a fragilidade do eu, o tributo que paga ao outro e ao espelho, o caráter duvidoso tanto do seu reconhecimento por si mesmo ("Não sou bem eu?") quanto do seu reconhecimento pelo outro ("Não me vês?"). Conhece-se a história: Sosia apressa-se para sua moradia, enviado por seu mestre Anfítrion que o manda como vanguarda para avisar Alcmene, esposa de Anfítrion, do sucesso de suas empreitadas militares. Mas, ao se aproximar da casa, ele para bruscamente: pois no limiar o espera firmemente Mercúrio, metamorfoseado em Sosia por ordens de Júpiter, que pretende aproveitar a ausência de Anfítrion para seduzir Alcmene. Outro está em seu lugar e ocupa o local de sua residência ordinária, opondo ao pretendente legítimo um direito de propriedade tão usurpado quanto sua identidade de empréstimo: roubando Sosia tanto do que ele pensava ter quanto do que ele acreditava ser – um pouco como no início de um célebre sketch de Raymond Devos: "Ontem à noite, cheguei em casa mais cedo que o habitual: havia alguém nos meus chinelos." Comentário de Lacan: "Sosia, é o eu. (...) A primeira vez que o eu surge no nível do drama, ele encontra-se a si mesmo na porta, sob a forma do que se tornou para a eternidade Sosia, o outro eu. (...) A primeira vez que o eu aparece, ele encontra eu. E quem, eu? Eu, que te ponho para fora." Assim Mercúrio, de fato, interpela Sosia:
Quem vai lá? - Eu. - Quem, eu? - Eu. Coragem, Sosia.
Mas entre Sosia e seu duplo o combate é desigual: Mercúrio, o duplo, não tarda a vencer. Ele surra seu original em toda ocasião, recusa qualquer comprometimento (Sosia: Façamos em boa paz viver os dois Sosias; Mercúrio: Não, basta um só; e sou obstinado em não tolerar partilha) e acaba por arrancar de Sosia, de concessão em concessão (Sosia: E de mim eu começo a duvidar de verdade), uma abdicação completa, ou seja, uma renúncia pura e simples à sua identidade. Numa tirada notável, dirigida a Anfítrion irado que quer saber quem impediu seu criado de cumprir sua missão, Sosia traça assim o retrato de seu duplo triunfante:
É preciso repetir vinte vezes da mesma forma?
Eu, digo-vos; este eu mais robusto que eu;
Este eu, que se apossou à força da porta;
Este eu, que me fez andar na linha;
Este eu, que quer ser o único eu;
Este eu, de mim mesmo ciumento;
Este eu valente, cuja fúria
Ao eu covarde se fez conhecer;
Enfim, este eu que está em nossa casa;
Este eu, que se mostrou meu mestre;
Este eu, que me cobriu de golpes.
Sabe-se que a mesma desventura acontece a Anfítrion (duplicado ele por Júpiter) que não consegue recuperar nem sua esposa nem sua identidade, e isso por causa disto. Pois trata-se de uma forma de chifre muito particular, e muito refinada, que implica bem esta negação de si pelo outro que define todo ciúme, mas levada aqui a um grau extraordinariamente cruel: já que o outro, neste caso, não é outro senão a si mesmo. Proíbe-se Anfítrion de entrar em casa de sua mulher porque Anfítrion já está lá, ocupado em fazer amor com ela:
MERCÚRIO:
Vai-te, retira-te,
E deixa Anfítrion nos prazeres que ele desfruta.
ANFÍTRION:
Como! Anfítrion está lá dentro?
MERCÚRIO:
Muito bem,
Que, coberto com os louros de uma vitória plena,
Está junto à bela Alcmene,
A desfrutar das doçuras de uma amável conversa.
Após a disputa de um capricho amoroso,
Eles desfrutam do prazer de se terem reconciliado.
Guarda-te de perturbar suas doces intimidades,
Se não queres que ele puna
O excesso de tuas temeridades.
Encontra-se aqui, em primeiro lugar, a situação clássica e dolorosa do amante preterido (aquela que amas não pode receber-te, ocupada que está a fazer amor; contudo, não se te censura: se fores embora neste exato momento, sem pedir mais nada, nenhum mal te será feito). Mas aqui acontece algo que leva ao auge o mecanismo da expulsão que constitui o cerne do sofrimento causado pelo ciúme: nisto, o ciumento não precisa sequer ser negado, já que cessou simplesmente de ser aquele que teria de ser ciumento, e eventualmente expulso. Negá-lo-íamos de bom grado, se ele fosse alguém; mas eis que ele já não é nada, tendo passado do estado de rival importuno para o de puro não-rival, por não ser (já que o eu que ele pretende ser está noutro lugar, presentemente ocupado a "reconciliar-se" na companhia de Alcmene). O amante titular, o marido, não tem do que se queixar: não é ele, neste exato momento, honrado e mimado como tal? Ele também não tem rival: não é este último justamente ele mesmo? O ciúme em seu paroxismo aparece assim como um sofrimento que nem sequer está ao alcance de quem sofre, por falta de objeto como de sujeito. Desorientação do ciúme que persiste uma vez retirado seu motivo, e aparentemente não sem razão: tal é o estado de raiva em que se pode imaginar Anfítrion traído, mas por ninguém; tal é também a condição de toda cólera profunda, que não cede à eliminação dos motivos que a haviam provocado. Pois a quem atacar, se sou justamente eu que durmo com minha mulher e, no entanto, bizarramente, não estou lá? Sou aqui negado in absoluto, sem recurso nem remorsos possíveis. Se um outro toma meu lugar, não perco, no entanto, a qualidade de ser eu: simplesmente reduzido à condição de expulso, tão bem descrita por Samuel Beckett Beckett BECKETT, Samuel (1906-1989) (O Expulso). Pois, no final das contas, um eu derrotado vale mais do que nenhum eu. Um eu eliminado do jogo sempre encontrará o acolhimento de um retorno e de um veículo deixado de lado, como acontece ao herói de Beckett Beckett BECKETT, Samuel (1906-1989) , que finalmente se conforma. Coisa bem diferente é ser posto noutro lugar sem que se tenham dado ao trabalho de te expulsar, como acontece a Anfítrion e a Sosia. Nenhum lugar poderia então acolher algo que apenas tinha de ficar em seu lugar, ou melhor, que ainda lá está, como se notaria facilmente ao dar uma olhada no quarto de Alcmene, onde se encontrará Anfítrion, assim como em seu vestíbulo, onde se encontrará Sosia. Nem mesmo é possível, e este é o ponto decisivo, procurar refúgio no lugar do outro que te desapossou de ti mesmo: pois este não ocupava previamente nenhum lugar, e, portanto, não desertou nenhum lugar do real – que ele deixaria assim vago e oferecido ao primeiro pretendente, de que, em primeiro lugar, a ti mesmo – para vir ocupar tua moradia.


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