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Contes philosophiques du monde entier: cercle des menteurs
Jean-Claude Carrière – Estórias, contador
quarta-feira 2 de julho de 2025
A única ambição do contador de histórias é parecer necessário. Como um camponês ou um padeiro. Nem mais, nem menos. Pois as histórias que ele conta revelam certos aspectos do espírito que não são perceptíveis de outra forma. Civilizações muito poderosas o colocaram no centro dos cruzamentos, às vezes no centro do próprio palácio, e sua santa padroeira é obviamente uma mulher, a ilustre Sherazade, que jogava uma cabeça em cada relato, que encantava cuidadosamente a noite e se calava, sonhadora, ao ver a aurora.
Isso demonstra a importância de uma narração bem conduzida. Ela brinca com a vida, com a morte. Talvez até — voltemos a isso — não sejamos mais do que uma história, com um começo e um fim. Mas, nesse caso, quem a conta?
Outra visão alegórica, que encontraremos mais adiante, apresenta o contador de histórias em pé sobre uma rocha, contando suas histórias ao oceano que o confronta. O oceano o escuta, suavemente agitado, fascinado. Mal uma história termina, outra deve surgir imediatamente, pois não há uma última palavra. E a alegoria nos diz com força: Se um dia o contador de histórias se calar, ou se o fizerem calar, ninguém pode dizer o que o oceano fará.
Essa posição imponente pressupõe uma condição que a maioria de nossos contemporâneos considera dolorosa: o contador de histórias nunca deve falar de si mesmo. É uma regra de ouro. Falhar nisso é permitir que o oceano varra a rocha desprezível onde um homem, um dia, se considerou digno de ser contado. O verdadeiro contador de histórias é quase uma névoa, uma alta torre perfurada por buracos ao acaso. Ventos se precipitam nessa torre, carregando mensagens distantes, e a torre ressoa com a passagem dos ventos, a ponto de, por vezes, parecermos reconhecer uma voz.
Um erro comum é acreditar que se pode fortalecer uma história fincando-a na realidade. É exatamente o contrário. Muitos de nossos amigos, e nós mesmos sem dúvida, começam dizendo: "Aconteceu uma coisa extraordinária com meu tio, ou com certa pessoa que conheço." E então contam, em uma mentira estranhamente sincera, uma história de vários séculos, da qual não se pode dizer quem a viveu, nem quem a inventou.
A beleza de uma história vem quase sempre da obscuridade. Os grandes autores são desconhecidos. Quem escreveu a Bíblia, o Mahabharata? Que tipo de homem era Shakespeare Shakespeare William Shakespeare (?-1616) ? Quando se ouve uma história hilária, que hoje nos faz rir e que às vezes nos faz refletir, quase sempre se pergunta: mas quem pode inventar tais maravilhas? A resposta é secreta como a maioria das respostas. Contamos a nós mesmos, sem dúvida, as histórias de que precisamos e elas nascem em uma boca ou em outra, surgidas de uma vibração quase negra, comum a todos, inexplorável, onde a palavra "imaginação" não faz mais sentido. É por isso que as histórias muito belas não pertencem verdadeiramente a ninguém. Nenhum contador de histórias pode afirmar: esta história é minha. A boca da sombra fala por todos. A imensa popularidade, o ápice da glória, é em última análise o anonimato.
Como outras estruturas (talvez), já que as histórias estão lá apenas para colocar em relação quem fala e quem escuta, e através deles a própria matéria que os une e o movimento que os leva, essas histórias mudam de cores e de formas, mudam até de nomes de acordo com o tempo que as conta. Às vezes, o próprio sentido é misteriosamente distorcido. Quando Victor Hugo Victor Hugo Victor-Marie Hugo (1802-1885) , em um poema de A Lenda dos Séculos intitulado Supremacia, adapta o Kena Upanishad, ele altera deliberadamente o final, enfraquecendo de alguma forma o poder do deus Indra diante do desconhecido que o provoca. Deformação consciente ou sofrida? Não se pode dizer. Victor Hugo Victor Hugo Victor-Marie Hugo (1802-1885) escrevia de si mesmo, e seu tempo escrevia nele. Ele era, em um século em que os ventos sopravam, uma das torres na alta montanha.
Por respeito à obscuridade, não sobrecarreguei essas belas histórias com nenhum tipo de comentário. Indico apenas a origem suposta, com todas as reservas. Banir a erudição, que tanto gostaria de catalogar o vento.
A expressão popular, nascida no movimento sinuoso da multidão, em uma certa expectativa, em uma vaga necessidade — mesmo que tal ou qual autor famoso, encontraremos mais adiante exemplos, não hesite em monopolizá-la — é justamente o que escapa à etiqueta, à análise, o que é por natureza fugidio, instável, ambíguo às vezes até a incoerência, em uma palavra, vivo. Qualquer classificação sistemática — por época, por povo, por tema, por estilo — correria o risco de sufocar essa imperfeição tão preciosa.


Ver online : CARRIÈRE, Jean-Claude. Le Cercle des menteurs. Contes philosophiques du monde entier. Paris: Plon 1998