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Jan Patocka. L’écrivain et son "objet"

Patocka – Fausto de Goethe

Le sens du mythe du pacte avec le diable

quinta-feira 3 de julho de 2025

Tanto no Volksbuch quanto em Marlowe, em sua primeira versão poética, a história de Fausto permanece ao mesmo tempo uma lenda explicitamente alemã, situada com precisão em um lugar do mundo e um ponto no tempo. A unidade da cristandade não existe mais. Os países das fronteiras ocidentais se libertam abertamente dos laços impostos pela autoridade e pelo poder espiritual. No entanto, mesmo na fragmentação e no caos do período da Reforma, o Sacro Império Romano permanece fundamentalmente inalterado. A Reforma revigora o tema tradicionalmente gibelino do antipapismo, mas isso mesmo prova que ainda se mantém uma relação com esse antigo centro da história europeia, com a ideia de autoridade e poder espiritual. Por outro lado, o perigo que ameaça a organização política e a forma de vida universalista da Europa se faz sentir de maneira bastante concreta. Em certo sentido, poder-se-ia dizer que aqui também a alma imortal foi vendida em troca de novas possibilidades mundanas, que aqui também os motivos autenticamente universalistas da transação foram posteriormente renegados e perdidos de vista. Não que se pudesse manter indefinidamente a antiga organização política universalista da Europa. Fundada mais na auctoritas do que na potestas, ela tem uma estrutura muito frouxa para resistir às novas concentrações de poder político e econômico. O Sacro Império, organização da humanidade baseada na autoridade e no poder espiritual, não deixa de ser, no entanto, uma realização do imortal. A ideia de um poder espiritual que assume uma figura visível no organismo efetivo, ainda que precário, do sacrum imperium, é a expressão sociopolítica da alma imortal. É, portanto, perfeitamente natural que o perigo extremo que ameaça o que até então foi o baluarte da humanidade europeia dê origem a uma lenda sobre a venda da alma imortal. Mas pode-se perguntar se o objeto dessa transação não é antes a figura decaída do que a figura autêntica da alma imortal. Pareceria, de fato, que uma autoridade baseada na espiritualidade, ou seja, na intuição no sentido do olhar no que é, e em uma força de convicção interior, só pode subsistir sob uma forma degenerada a partir do momento em que essa força de convicção a abandona. A ideia de um império espiritual é concebida originalmente para tornar possível a vida de um homem perfeitamente verídico, em busca da verdade e vivendo na verdade, dentro de uma comunidade estatal. Desde o instante em que a organização da autoridade, adequada sem dúvida a uma certa etapa da busca da verdade, mas que não visa mais finalmente senão a assegurar sua própria continuidade, deixa de concordar com sua ideia, ela está perdida. No vazio que a atinge, corre o perigo de esquecer sua figura autêntica e a necessidade que a ela se prendia.

Goethe Goethe Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) se volta para a ideia de Fausto em uma época em que se tenta integrar os componentes germânicos do sacrum imperium em um novo império do Ocidente que só conserva um caráter sagrado e espiritual na memória dos messianistas. Seu poema se situa em um quadro que, nos parece, caracteriza o conjunto da vida espiritual desse período, mais particularmente a espiritualidade alemã: é uma tentativa de interpretar o novo florescimento do espírito alemão na poesia e no pensamento como o precursor de uma espiritualização universal da época. O Iluminismo, voltado para o exterior, a época buscaria novamente um caminho para a interioridade, caminho que se crê encontrar sob o signo desse movimento. A lenda de Fausto é então concebida como reconciliação. Não se trata mais da venda da alma imortal, mas sim de uma aposta. A alma imortal está segura de si, não pode se perder, mas no máximo fraquejar, deixar-se fascinar e adormecer pelas coisas que lhe são inferiores. Entre o Iluminismo e a espiritualização universal, entre o entendimento e a razão, entre o exterior e o interior, não há simplesmente oposição, mas também continuidade. Não se duvida da imortalidade da alma, do teor espiritual da vida; a eternidade é certa como outrora. A aposta diz respeito à vida aqui embaixo e sua justificação do ponto de vista do espírito. Justificação cuja possibilidade não está em questão, pois em um universo espiritual, tudo deve poder em última instância ser compreendido espiritualmente. A vida terrestre só se expõe ao perigo de ser cortada do espiritual se se encerra em si mesma e, não encontrando mais saída, se imobiliza, incapaz de realizar o movimento ascendente da existência. É então que ela cai sob o domínio do μὴ ὄν que não só é indiferente, mas, do ponto de vista da alma viva, pior que o não-ser.

Fausto está desde o início preservado de tal atolamento na imediatez desencadeada que quer viver em um despreocupação absoluta em relação ao que é e ao que vigora. Ele é salvo, paradoxalmente, pela culpa que assume sobre si por causa de sua aposta. É a culpa que revela a impossibilidade de subtrair a vida imediata ao contexto dos valores reconhecidos de fato, impossibilidade que se torna patente quando, crendo agarrar a vida, é a morte que se segura. A vida sensível aparece assim como um aspecto da vida ética; a consciência da culpa é seu resultado legítimo. Embora o próprio Fausto proteste e persista em se opor aos preconceitos e à tradição, a aceitação da culpa por Marguerite é mais profunda que essa revolta individualista. Com a morte de Marguerite, sua recusa de buscar a “salvação” na fuga se torna agente da transformação interior de Fausto também. O motor secreto que o impulsiona para frente é desde então o fardo dessa culpa, o destino irrevogável de morte que assumiu sobre si. É isso que transforma até a sensualidade em ação ética (o que, a bem da verdade, ela sempre foi - ação eticamente má) e permite a Fausto se engajar no caminho da purificação que passa pela formação estética e pela vida ativa para se realizar no além. Assim, a tragédia de Marguerite é o elemento propriamente trágico, o tema condutor da concepção goethiana de Fausto. O castigo é aqui experimentado, de maneira totalmente platônica, como purificação da alma; a assistência exterior é recusada como não pertencendo ao ser, mas à simples aparência.

O que nos separa do Fausto de Goethe Goethe Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) é menos a prevenção do poeta a favor dessa personagem que se lança para frente, carregada do peso da culpa, do que, bem mais, sua concepção idealista do mundo, a imagem que apresenta de um universo onde tudo é símbolo espiritual e ético. Há uma profunda afinidade entre esse olhar e o da dialética hegeliana do espírito. Para aquele que assim olha o mundo na ótica da luz e da ideia, a imortalidade da alma, a eternidade do espírito não é problema; ela não é nem uma aposta nem o objeto de uma possível transação metafísica, mas um simples ponto de partida. Sente-se que, longe de representar em toda sua gravidade o problema da alma que pode se vender lá mesmo onde tende a um grau mais alto de autenticidade, essa visão do mundo minimiza sua importância. Em Goethe Goethe Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) (como também em Hegel), a alma não pode se vender; o “pantragismo” se detém na superfície; pressupõe-se a reconciliação, fosse preciso atravessar a negação. Mesmo em sua figura mais decaída e mais alienada, a alma vai ao encontro de um renascimento. É, portanto, a atividade que conta, a perseverança no caminho e nos esforços. A corrida tumultuada para frente e a superação de si se tornam palavras de ordem, enquanto o motivo propriamente interior (a culpa como o que move nesse movimento) passa despercebido, e Fausto é concebido cada vez mais como homem de ação, super-homem no sentido moderno, pós-idealista do termo.


Ver online : PATOCKA, Jan. L’écrivain, son “ objet”. Paris: Presses Pocket, 1992