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Les Cahiers d’Hermès II
Chastel: Pico della Mirandola e O HEPTAPLUS (3)
Rolland de Renéville (dir.). La Colombe, 1947
quinta-feira 10 de julho de 2025
III A DOUTRINA DO « HEPTAPLUS »
A cosmogonia platônica é exposta no Timeu, a criação do mundo segundo o relato mosaico lê-se no primeiro capítulo do Gênesis. Desde dez séculos, os Padres gregos e santo Agostinho, depois os platônicos de Chartres no século XII, esforçaram-se por confrontar as duas obras e harmonizá-las o melhor possível. Não é mais a empresa de Pico; ele não faz um comentário literal ou mesmo alegórico do relato bíblico, e disso se defende expressamente; tem os meios de tentar algo mais elevado e mais forte, porque sabe recolocar a exegese da Cabala sob o texto do Gênesis, e as glosas neoplatônicas sob o texto do Timeu. À luz dessas duas interpretações que lhe são igualmente familiares, Pico e só ele - como reconhece Ficino - é capaz de destacar os traços de uma doutrina oculta, de um ensino tradicional, sobre a origem e a destinação do mundo, que fornece uma visão perturbadora da história humana, e do qual todos os poetas teólogos, Orfeu, Hermes Trismegisto, Zoroastro, refletem, como Moisés e como Platão, a misteriosa revelação. É pelo esoterismo que o sábio da Renascença crê encontrar a via dessa síntese universal que é sua aspiração essencial.
Pico, numa primeira introdução, estabelece, segundo testemunhos antigos, sobretudo alexandrinos, é claro, que o Gênesis é uma suma misteriosa:
"Empenhei-me no estudo da criação do mundo e da obra famosa dos sete dias, com sérias razões para pensar que todos os segredos da natureza aí estão contidos." Objeta-se a aparência fácil e popular do relato; há, na realidade, oculta sob a narração, uma ciência mosaica que alimenta todas as tradições da Grécia e do Oriente; de fato, "se tratou alguma vez da natureza e da obra inteira da criação, se enterrou alguma vez em seu livro como em seu campo os tesouros da verdadeira filosofia, foi sem dúvida no texto onde trata expressamente da emanação das coisas a partir de Deus, do grau, do número, da ordem das partes do universo, com a mais alta capacidade filosófica" [1]. Os antigos hebreus proibiam o estudo da Criação antes da maturidade: é que já é preciso toda a ciência do homem para bem entendê-la.
Pico se propõe a fundar esse estudo sobre uma base inteiramente nova "interpretando a criação do mundo sem o auxílio de nenhum dos comentadores anteriores, não segundo um só sentido, mas segundo sete sentidos superpostos, voltando sempre ao ponto de partida para a exposição de cada um deles, para obter uma ordem clara e livre de toda confusão" (Ibid., p. 182).
Com a afirmação de que o primeiro capítulo do Gênesis é bem uma síntese oculta do saber, é esse método que faz a novidade do Heptaplus. Numa segunda introdução, Pico expõe a necessidade dos sete pontos de vista sucessivos ou antes interiores uns aos outros, que comandam a estrutura de seu comentário. Pois o Heptaplus, em vez de examinar sucessivamente a obra de cada um dos sete dias do Gênesis, os considera sempre em totalidade, mas cada vez segundo um princípio de simbolismo diferente.
A dedução dos sete sentidos é aliás bastante simples: há três mundos, angélico, celeste e sublunar, e um quarto que os resume e contém: o homem. Moisés evidentemente deu a chave disso em sua obra, "donde uma exposição quádrupla do texto mosaico, relacionando-o primeiro ao mundo angélico ou invisível, sem referência aos outros, em segundo lugar ao mundo celeste, depois ao mundo sublunar e corruptível, enfim à natureza humana". Mas é necessária uma quinta exposição, pois os quatro mundos, embora distintos, deduzem-se de certo modo um do outro. Uma sexta exposição insistirá sobre seu elo. "Finalmente, como os sete dias da Criação foram seguidos do Sábado, convém que numa sétima exposição, de certo modo sabática, após ter tratado da ordem das coisas que procedem de Deus, de sua união, sua diversidade, seus elos e seus hábitos, exponhamos uma interpretação da felicidade das criaturas e de seu retorno a Deus..." (Ibid., pp. 194 e 196) Tais são os sete selos colocados sobre os mistérios do ser que Pico pretende enunciar para sempre.
Em sete exposições de sete capítulos, Pico desdobra assim a substância maravilhosa e as razões do universo. Gostaríamos apenas de enunciar aqui os grandes temas, sem proceder às comparações necessárias para lhes dar todo seu significado. A primeira exposição "do mundo elementar" concerne o jogo supremo das causas e esboça uma ontologia onde Aristóteles e Platão se conjugam com o texto bíblico: "Sobre as águas, isto é, as flutuações da matéria, é levado o Espírito do Senhor, isto é, a forma da causa agente, concebida não como causa principal, mas como instrumento da arte divina, como nosso espírito é instrumento de vida. E imediatamente, sob a ação do Espírito sobre essas águas que determina, pela vontade de Deus demiurgo, apareceu a luz, isto é, o esplendor e a beleza da forma." (Ibid., pp. 210 e 212)
Na segunda, "do mundo celeste", expõe-se a ordem das nove esferas, sua natureza e função, e de passagem, o sentido da distinção de macho e fêmea.
Na terceira, "do mundo angélico e invisível", Pico expõe que o anjo é número, isto é, distinção e, como tal, imperfeito. Em virtude do princípio de exegese que estabeleceu, as mesmas passagens, os mesmos versículos do Gênesis são submetidos a uma interpretação diferente: "Lemos que o céu foi colocado no meio das águas; o que indica três hierarquias de anjos: a primeira e a última indicadas pelas águas que estão acima do céu e abaixo, a série intermediária que as separa designada pelo firmamento." (Ibid., p. 254)
Na quarta exposição, "da natureza do homem", as mesmas imagens revelam outro sentido, não menos adaptado a seu objeto, a antropologia esotérica: "Não é sem razão que antes da criação do homem pela união da alma e do corpo graças à luz, lembra-se que o Espírito se estendeu sobre as águas: é para que não venhamos a crer que o Espírito só esteve presente a nossa inteligência após sua união com o corpo." (Ibid., p. 276)
"As águas significam a parte sensual que está submetida à razão e está diretamente a seu serviço. A terra é esse próprio corpo, terrestre e perecível, do qual estamos cercados." (Ibid., p. 282)
A quinta exposição, "de todos os mundos em ordenação sucessiva", lembra que "as mesmas coisas têm diversos nomes para designar suas propriedades diversas": a divisão das águas pelo céu significa ainda a lei hierárquica do mundo, que se exprime maravilhosamente no homem. E num capítulo digno do início da Oratio, Pico lembra que o homem não é tanto "um quarto mundo, uma criatura nova, quanto o complexo e a síntese dos três mundos já descritos" (Ibid., p. 300); assim está ele à imagem de Deus.
A sexta exposição, "sobre o elo dos mundos entre si e com todas as coisas", concerne o encadeamento dos seres: "Como para as gotas d’água, a felicidade consiste em se derramar no Oceano, onde está a plenitude das águas, assim nossa felicidade é poder nos unir um dia a essa centelha de luz intelectual que está em nós." (Ibid., p. 322)
Donde a sétima exposição "sobre a felicidade que é a vida eterna"; Pico desenvolve uma visão escatológica da história, onde todos os símbolos são traduzidos em acontecimentos e realidades concretas: "Os judeus são ditos águas supra-celestes, porque só eles, segundo Jeremias, não temeram os sinais do céu como os outros povos... Os gentios, ao contrário, são as águas colocadas sob o céu, porque adoram os demônios que habitam as trevas do ar..." (Ibid., p. 342) O quarto dia exprime assim "o cumprimento do tempo", a aparição do Sol que é o Cristo; e através do relato dos dias que seguem são evocados os que "vivem segundo o espírito e são assim filhos de Deus", os verdadeiros filhos de Israel.
O texto mosaico é assim apresentado como um sêxtuplo jogo de símbolos: é pela interpenetração múltipla de seus sentidos que Pico pode realizar a fusão das tradições que é seu objeto essencial. Também é mais o espírito da síntese que os termos mesmos da doutrina - apesar de seu acordo geral com as noções ocultistas - que importa. Pico o sentia talvez ele mesmo, e quis precisar seu ensino relacionando-o expressamente à Cabala num curioso capítulo final. As sete exposições terminadas, Pico comenta, com efeito, a significação suprema da expressão "no princípio"; e, com os cabalistas, encontra na forma e no agrupamento mesmos das letras símbolos prestigiosos.
"Quis aventurar-me a explicar a primeira locução da obra, beresit em hebraico, isto é, entre nós in principio, para ver se eu também poderia, segundo os princípios antigos, encontrar algum conhecimento digno de ser revelado. Além de todas as minhas esperanças, de toda verossimilhança, encontrei o que jamais teria acreditado possível encontrar, e que outros tiveram muita dificuldade em admitir: a razão da criação do universo é revelada e explicada nessa única palavra.
"Digo algo de maravilhoso, de inacreditável, de inaudito. Mas, prestando atenção, terão disso a demonstração verídica. Em hebraico, escreve-se: berescith..." (Ibid., p. 376) Combinando cada uma das letras com todas as outras, obtém-se uma série de palavras que forma uma frase, e esta pode se traduzir: "A perda no filho e pelo filho, princípio e fim, isto é, repouso, criou a cabeça, o fogo e a base do grande homem, em virtude de um pacto que é bom." (Ibid., p. 378) Tal é a revelação final sobre a qual se encerra o Heptaplus: reconhece-se nela a letra e o espírito do "Zohar".
A obra obteve um sucesso de estima junto aos humanistas: foi acolhida com hostilidade em Roma. Numa carta de 1489, Lourenço escreve a seu respeito: "Aprendi com grande tristeza como se abate sobre essa obra de Mirandola, e se não estivesse seguro de que essa perseguição vem da inveja e da malícia, não falaria disso. Essa obra foi examinada por todos os doutos religiosos que temos aqui, homens de boa reputação e santa vida, e todos a aprovaram absolutamente como cristã e magnífica. Estou seguro de que se recitasse o Credo, os espíritos mal-intencionados (de Roma) diriam que é heresia." [2] Mas enfim o Heptaplus, como se pode julgar, não é a simples recitação do Credo.


Ver online : PIC DE LA MIRANDOLE ET L’ « HEPTAPLUS » (original na íntegra)
Les Cahiers d’Hermès II. Dir. Rolland de Renéville. La Colombe, 1947.
[1] Pico, op. cit., Heptaplus, pp. 170 e 176
[2] Carta de Lourenço a Lanfredini, citado Garin, op. cit., p. 33