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Les Cahiers d’Hermès II
Chastel: Pico della Mirandola e O HEPTAPLUS (2)
Rolland de Renéville (dir.). La Colombe, 1947
quinta-feira 10 de julho de 2025
II Pico em 1488
Quando, na primavera de 1488, Carlos VIII devolve a liberdade ao prisioneiro da Sorbonne e o entrega à proteção de Lourenço de Médici, solicitando do papa uma graça que tardará a vir, Pico tem vinte e cinco anos. Está no meio de sua carreira, ainda tem seis anos de vida. Seu período feliz passou: o afresco de Cosimo Rosselli em Santo Ambrósio de Florença que o representava em 1486, com sua nobre cabeça loira, seu olhar perdido na contemplação, é o último testemunho de sua juventude deslumbrante e já anuncia a gravidade de seus últimos anos. Uma carta de Lourenço de Médici datada de 13 de junho de 1489 — um ano depois — nos informa bem sobre o novo estado de espírito do jovem sábio, após a ruptura com Roma, após o exílio e o cativeiro parisiense. Disse adeus aos prazeres, às ambições, e, cristão cada vez mais fervoroso, dedica-se à meditação solitária: "O conde da Mirandola está agora entre nós, vive santamente, como um religioso, trabalhou e trabalha sem descanso em obras teológicas, comentários dos Salmos e outros trabalhos importantes. Recita o ofício ordinário do clero, observa o jejum e as mais severas abstinências; vive quase só e sem luxo com os servidores indispensáveis, modelo para todos os outros homens." [1]
Como não pensar em Pascal que, por volta da mesma idade, após ter concebido as maiores ambições intelectuais, também volta da ciência para Deus, e formou alguns anos o desígnio de colocar seu saber a serviço de uma religião mais austera, antes de tudo sacrificar à ascese e à oração? Pico está pronto a sofrer a influência de Savonarola e dos reformadores dominicanos, como Pascal vai se submeter cada vez mais à de Port-Royal: em sua segunda "conversão", renegará e repudiará as ambições intelectuais que ainda nutria após seu primeiro retorno decisivo às crenças e práticas cristãs. Em 1488, é um teólogo retirado do mundo que se instalou na vila mediceana perto de Fiesole: as grandes obras às quais alude Lourenço, e que o ocupam paralelamente ao comentário dos Salmos, são uma tentativa suprema de demonstrar o acordo profundo da Escritura — interpretada segundo a Cabala — e da doutrina platônica, é a retomada sistemática dos temas da Oratio, é o comentário do Gênesis que se intitulará Heptaplus ou o "comentário sétuplo da obra dos seis dias", de septiformi sex dierum geneseos enarratione.
O retorno a Florença do jovem conde não é marcado apenas por seu renovo cristão, mas também por uma nova intimidade com o mestre que, quatro anos antes, lhe ensinava a filosofia platônica, Marsílio Ficino. Os temas de discussão nunca faltaram entre o mestre e o discípulo: nutrido de escolástica averroísta antes de vir a Florença, informado das doutrinas hebraicas das quais tirava grande proveito, Pico chegara a publicar, em seu primeiro livro, o "Comentário à canção de amor de Girolamo Benivieni", em 1486, um pequeno ensaio tão pouco ficiniano de espírito quanto possível. Os dois sábios voltariam a se chocar sobre os dois problemas fundamentais que se ofereciam, no final do século, ao novo humanismo florentino, o problema do valor da ciência, isto é, da astrologia, e o da reforma religiosa sobre a qual Ficino sempre se mostraria tão reservado: Pico escreverá em 1490-1491 um grande tratado contra a astrologia, que é um dos fundamentos da cosmologia de Ficino, e se aliará desde 1492 ao círculo de "São Marcos" onde reunirá em torno de Savonarola alguns dissidentes da "Academia platônica". No momento do Heptaplus, durante esses dois anos de proteção mediceana e de retiro em Fiesole, as relações de Pico com seu mestre não são mais as de 1486 e as dissensões ainda não são evidentes. Ficino apoiara afetuosamente a causa de Pico junto aos enviados de Roma e a Lourenço. Pico lhe devia em parte o fim de seu exílio, e, aliás, Ficino o saudou, em sua chegada a Bolonha, numa mensagem amistosa: "Nosso amigo Roberto Salviati me anunciou que chegaste bem a Bolonha, enquanto eu estava mergulhado numa conferência pública. Felicito-te por teres assim te aproximado de nós, alegro-me por teres escapado das mãos dos maus.
"Em outubro passado, enquanto Mercúrio era devorado pelos fogos de Marte, os povos que estão sob o signo deste se agitaram contra ti, mas seus desígnios foram reduzidos a nada pelo Mestre do céu. E nós, com o favor de Júpiter e de Vênus, com o apoio de Lourenço, o Magnífico, pudemos impedir que Mercúrio fosse queimado, mesmo na terra. Peço a Deus que frustre no futuro nossos inimigos e caluniadores. Saúde, sê próspero e ama-me como te amo." [2]
Mas as relações com Ficino eram sempre complicadas e bizarras: vivia no meio dos presságios, com obsessões e precauções singulares. Em tudo, calculava o favor ou a ameaça dos planetas. Em 1489, publicaria justamente o terceiro livro de seu tratado, "Os três graus da vida", De vita triplici, onde faz a teoria do gênio saturniano e traduz em linguagem astrológica o drama interior da Renascença [3].
Por duas vezes, Ficino foi misteriosamente impedido de se unir ao amigo, e este o zombou numa carta do início do verão de 1488: "O que te fez partir, foi teu senhor Saturno?" Mas Ficino se explica, acusando os movimentos celestes de seu "demônio" astral. Assim, ao mesmo tempo que reencontrava Ficino, Pico mergulhava novamente na estranha atmosfera do neoplatonismo florentino, todo preocupado com símbolos pagãos, com sinais celestes. Tanto quanto as preocupações religiosas, o Heptaplus traz a marca desses contatos mais estreitos do jovem conde com a Academia platônica. Seu grande tratado se apresenta expressamente como uma "concordância de Moisés e Platão", e Pico retoma triunfalmente a fórmula neoplatônica já utilizada por Ficino: "Platão não é senão um Moisés ático." [4]
Pico, em Florença, reencontrou também a Cabala. A grande novidade da Oratio era o recurso às fontes hebraicas, e não fora a menor razão de inquietação dos teólogos romanos. Na justificação das treze proposições condenadas, que constitui a Apologia, Pico insistira nesse ponto. A quinta tese se enunciava: "Nenhuma ciência nos traz mais prova da divindade de Cristo que a magia e a cabala." Em sua defesa, Pico zomba da ignorância de seus juízes: "Essa palavra (de Cabala) causa tal horror a esses padres, eles tremem tanto ao ouvi-la, que alguns deles devem crer que os cabalistas não são homens, mas bircocerros ou centauros monstruosos. E eis algo para divertir: como se perguntou a um deles o que era essa Cabala, respondeu que era o nome de um homem pérfido e diabólico, autor de numerosos escritos contra Cristo, e que seus discípulos eram por isso chamados cabalistas. Não é engraçado?"
Mas, de fato, na Oratio, Pico explicara como os livros da Cabala são a continuação oculta da civilização mosaica. Acreditava, com efeito, na autenticidade dos livros de Esdras, como toda a Renascença, obtivera-os a peso de ouro e os fizera traduzir, como o papa Sixto IV por volta da mesma época [5]. É a eles que se refere expressamente: "Quando, pela vontade de Deus, foi revelada a verdadeira interpretação da lei divina comunicada a Moisés, chamou-se-lhe Cabala, que em hebraico significa ’recepção’, porque essa ciência é transmitida de um a outro por revelações sucessivas como em virtude de um direito hereditário, e não por documentos escritos..." Após o cativeiro da Babilônia, Esdras os fez redigir para que os "mistérios da ciência divina" não corressem o risco de se perder; e é aí a origem dos "livros da ciência cabalística" [6].
Em 1486 — sabemos por suas cartas — Pico trabalhava sobre os textos hebraicos e caldeus com o judeu Flavius Mithridate [7]; de volta à Itália, entrou em contato com um certo Giovanni Alemanno, ou Johanan, professor de hebraico, que acabara de se instalar na cidade junto a um rico correligionário [8]. Foi ele que permitiu a Pico fazer sobre os originais suas traduções dos Salmos e o apoiou em seus novos estudos cabalísticos.
No final de julho de 1488, Ficino exprimia, numa carta a Roberto Salviati e a Jerônimo Benivievi, todas as esperanças que permitia novamente a extraordinária potência intelectual do jovem conde da Mirandola:
"Seu nome de conde da Concórdia é bem justificado, pois busca harmonizar as correntes de pensamento mais opostas... Como as brumas se dissipam ao nascer do sol, assim com a chegada de Pico todas as oposições desaparecem; bruscamente a concórdia o segue e o toma por guia; só ele pode realizar o que tantos outros tentaram antes dele, pois se empenha sem descanso em mostrar o acordo dos judeus e dos cristãos, dos peripatéticos e dos platônicos, dos gregos e dos latinos." [9]
Concluído no início de 1489, a obra foi dedicada a Lourenço, o Magnífico, por ocasião da elevação de seu filho João à dignidade de cardeal, em 9 de março de 1489. Em duas longas introduções, Pico expôs a seu protetor a singularidade de sua empresa e seu método.


Ver online : PIC DE LA MIRANDOLE ET L’ « HEPTAPLUS » (original na íntegra)
Les Cahiers d’Hermès II. Dir. Rolland de Renéville. La Colombe, 1947.
[1] Carta de Lorenzo di Medici a G. Lanfredini, embaixador de Florença em Roma (13 de junho de 1789). Cf. Fabroni, Laurentii Médicis vita, Pisa, 1784, t. II, p. 291
[2] Marsilii Ficini, Opéra, ed. de Basileia, 1576, t. I, p. 885
[3] Cf. nosso ensaio: Saturno na Renascença, em Phœbus, Holbein Verlag, Basileia, n° 3-4
[4] Pico, op. cit., p. 173
[5] Sobre essa questão das traduções efetuadas para Pico e Sixto IV, ver G. Pico della Mirandola, Dignita dell’uomo, ed. B. Cicogriani, Florença, 1945, pp. 124 seg.
[6] Pico, op. cit., Oratio, pp. 156-158
[7] Ver J. Festugière, Studia Mirandulana, op. cit.
[8] Cassuto, Gli ebrei a Firenze nell’età del Rinascimento, Florença, 1918
[9] M. Ficino, op. cit., p. 890