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Pierre-jean Labarrière – De um estilo do pensamento

Quand l’utopie se fait histoire

A Tutela Dantesca e a Natureza   da Figura   Poética

Ao inaugurar esta série de reflexões, impõe-se a tutela ou a égide de Dante Alighieri, reconhecido não apenas como poeta do pensamento e pensador da poiesis, mas, sobretudo, como mestre da figura, entendida aqui não na oposição trivial entre figurativo e abstrato, mas como a interseção da geometria   sagrada do além-mundo   com a carnalidade verbal; a figura para Dante constitui o encontro de uma lógica plenamente utópica, desprovida de lugar e temporalidade, com o miasma e a suavidade do mundo sensível, configurando a obra literária   como um   objeto manufaturado de beleza   que transita entre as pestilências e o brilho   das águas. A Divina Comédia   apresenta-se como um caminho   iniciático que todo   ser humano   é convocado a percorrer, traduzido na experiência   de se encontrar no meio do caminho da vida   em uma selva escura onde a via reta se perdera, uma floresta   cuja aspereza renova o medo no pensamento e cuja amargura se assemelha à morte  , mas que deve ser   atravessada para que se possa relatar o bem   ali encontrado; tal travessia   exige que a alma  , semelhante ao náufrago que se volta para mirar as águas perigosas, contemple o passo que jamais deixou alguém com vida, iniciando um périplo que vai da obscuridade à luz   dos raios planetários que guiam retamente por todas as veredas. Este itinerário não se restringe a uma narrativa   pessoal, mas estabelece um paradigma de transição no coração   das coisas, operando o longo desvio pelos caminhos noturnos essencial aos místicos, poetas e filósofos.

O Signo Tríplice: Eckhart, Dante e Hegel como Fronteiriços

A tarefa de compreensão   amplia suas referências para se colocar sob o signo tríplice de Mestre Eckhart, o místico, de Dante, o poeta, e de Hegel, o filósofo, convocados não na qualidade de especialistas de campos delimitados do saber, mas pela seriedade com que assumiram, na disciplina do pensamento e da ação  , a condição de fronteiriços; observa-se que o místico foi também poeta e filósofo, o poeta soube expressar em pensamento claro a parte noturna do périplo comum, e o filósofo não permaneceu estranho ao canto do verbo e ao rigor dos processos de experiência, autorizando o reconhecimento em cada um deles da figura do nauta de nossas circumnavegações infernais, um Virgílio que emana vasto rio de linguagem   e que, oportunamente, transmuta-se em Beatriz para guiar a reflexão pelas obscuridades rumo à luz do poema único moldado sob as figuras de Deus  , da Beleza e do Pensamento.

A Lógica Fundamental e o Gesto do Pensamento

Busca  -se, em consonância com Eric Weil ou Heidegger, a simplicidade de uma atitude ou gesto único do pensamento que precede ou transcende qualquer categorização definida, visando no próprio discurso   o seu gesto gerador ou a origem do ato de discorrer, o que se denomina lógica fundamental; tal lógica não constitui um lugar teórico isolado, mas a base antepredicativa obrigatória para estruturar as experiências diversas sob a dupla razão da inteligibilidade interior e da comunicabilidade exterior, reafirmando a certeza dialética de que o mais imediato é sempre fruto de longas mediações e que a compreensão dos eventos cotidianos exige decifrar neles a constituição interior da memória  . Este processo implica uma submissão ao gesto intemporal que, por sua plasticidade, rearticula as figuras do tempo  , conferindo-lhes a dignidade de uma história   através da tensão estruturante entre o aqui e o alhures, o agora e a intemporalidade lógica, permitindo, conforme Claudel, nascer com as coisas em um dizer essencial contemporâneo à sua produção no ser  , definindo assim um estilo   de pensamento enraizado no tema do nascimento e do co-nascimento caro a Mestre Eckhart.

O Estilo como Tensão entre o Universal e o Singular

Ainda que o adágio afirme que o estilo é o homem, o conceito deve ser purificado de ressonâncias fúteis para recuperar sua gravidade originária, auxiliado pelas reflexões modernas sobre a linguagem, onde se distingue, com Roland Barthes, a escritura como codificação coletiva e o estilo como a maneira original e singular de talhar nesse tecido geral; a etimologia do termo grego stylos remete à coluna ou estela, e o latino stylus ao instrumento de escrita em cera, indicando que o estilo rege a relação do escritor   com a matéria   de sua expressão e com a totalidade do dicível, resultando da interação entre os dados objetivos preexistentes do sistema linguístico e cósmico e a maneira própria do sujeito se relacionar com eles. O estilo configura-se, portanto, como um conceito operatório que conjuga o conhecimento   dos códigos coletivos com a propriedade singular de transgredi-los em vista de uma maior expressividade, manifestando uma tensão entre o universal das regras e a liberdade   individual, aplicável, segundo Gilles-Gaston Granger, ao conjunto dos modos de produção dos objetos humanos. Na distinção hegeliana entre o lógico (das Logische) e a lógica (die Logik), o primeiro designa o gesto simples e universal de organização, enquanto o segundo refere-se à gestão de campos determinados, sendo a lógica fundamental a explicitação desse gesto fundador que, embora não exista substancialmente, é a fonte   última do que existe, operando como uma superficialidade por profundidade, na expressão de Nietzsche, que revela a conivência original das diversas figuras expressivas humanas.

O Itinerário da Lógica Fundamental: Unidade Plural e Discurso da Alteridade  

A presente reflexão articula-se organicamente com um itinerário bibliográfico anterior, enraizado em Hegel e Mestre Eckhart e dominado pela fascinação de um Uno não redutor, mas gerador de diferenças, manifestado inicialmente na obra A Unidade Plural, que descreve o movimento da inteligência na leitura   e fatura do mundo através da Fenomenologia, Lógica e Poietica; prossegue-se com O Discurso da Alteridade, que sistematiza as categorias da liberdade em processo, articulando o viver e o dizer, a consciência   e a linguagem, e estabelecendo a relação estrutural entre o imediato e sua profundidade mediatizante, onde a horizontalidade da história só se torna inteligível ao se ressourçar no espaço interior da essência. Este percurso culmina em A Utopia   Lógica, que examina o ponto nulo ou nucleus reflexivo, ilocal e intemporal, cuja abstração   legítima permite que a lógica utópica emerja novamente na história para inervar os campos do saber, de modo que a atual investigação sobre a poietica busca demonstrar como esse gesto lógico, não categorizável em si, comanda a emergência de figuras de sentido   na filosofia  , na poesia   e na mística, encarnando o processo de compreensão.

A Dialética da Interioridade e da Exterioridade

A relação entre interior e exterior elucida-se através do aforismo de Henrique Suso, discípulo de Eckhart, registrado por Elsbeth Stagel, que postula que a interioridade que advém em exterioridade é mais interior do que a interioridade que permanece apenas em interioridade; esta formulação indica que o processo de figuração e expressão no externo é constitutivo da própria realidade   do interior, rejeitando tanto o idealismo subjetivo quanto o realismo ingênuo, e alinha-se com o pensamento de Hegel, para quem a força   do espírito possui apenas a grandeza de sua exteriorização, e cuja profundidade depende da ousadia de se perder na exposição. A passagem à existência ocorre quando todas as condições de uma Coisa estão presentes, momento em que o fundamento se supera como tal e a mediação desaparece no imediato do vir à luz, estabelecendo uma identidade reflexiva onde a fatura da obra e a leitura da realidade se convertem mutuamente.

O Paradoxo do Uno e do Múltiplo

A segunda questão lógica capital, a relação entre o uno e o múltiplo, encontra em Mestre Eckhart sua expressão máxima, onde a distinção na Trindade   provém da Unidade e a própria Unidade é a distinção, de modo que quanto maior a distinção, maior a unidade, desafiando o senso comum que percebe diferença apenas como hierarquia; esta identidade processual e contraditória aplica-se não apenas à teologia, mas a toda relação concreta da realidade com o seu outro, exigindo que o múltiplo da exterioridade cósmica retorne à sua raiz no Uno para conhecer a verdade   de seu enraizamento. O poema de Eckhart ilustra essa lógica paradoxal onde o fluxo   do espírito flui dos dois   como vínculo idêntico e inseparável, e onde a própria natureza de Deus, e consequentemente do homem, é sair de sua casa, de sua interioridade noturna e inominada, para se manifestar; a casa-Deus, una e múltipla, interior e exterior, não possui lugar fixo, permitindo que sua forma   apareça simultaneamente como ser eterno e figura histórica.

A Luta   Poética e a Fatura da Palavra

O processo de exteriorização e multiplicação do Uno não se dá apenas como fluxo pacífico, mas frequentemente como combate incerto contra a resistência das condições cósmicas e dos vocábulos, conforme atesta a violência   verbal de Jacques Roubaud em sua luta contra os sentimentos disponíveis e os gêneros esperados, onde os palavras são ouvidas e cuspidas com descontentamento; esta luta revaloriza o corpo   e a carne  , conferindo privilégio ao como sobre o porquê e à fatura artesanal sobre a teoria pura. A dicção desse processo assume preferencialmente a forma do paradoxo, do aforismo ou da dualidade entre poema e comentário, exemplificada por Dante na Vita Nuova e paradigmaticamente por São João da Cruz, que transita do poema ao comentário doutrinal e retorna à nudez poética. A reflexão encerra-se com o retorno à imagem   do deserto na estrofe de Mestre Eckhart, lugar onde nenhum pé pisou e nenhum sentido criado alcançou, um não-lugar que é e não é, nem isto nem aquilo, ecoando a noite   escura de São João da Cruz, onde a fonte que jorra e foge é conhecida, mas apenas na obscuridade da noite.


Ver online : Pierre-Jean Labarrière


LABARRIÈRE, Pierre-Jean. Poïétiques: quand l’utopie se fait histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 1998.