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Tempo e Relato I
Ricoeur (TR1) – A célula melódica: o par mimesis-mythos
O tecer da intriga
Fundamentos Metodológicos e a Dinâmica da Criação Poética
- A reflexão aqui empreendida situa-se em um segundo grau analítico e pressupõe uma familiaridade com os grandes comentários estabelecidos por Lucas, Else, Hardison e, notadamente, por Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot, sendo que os leitores que percorreram esse mesmo trajeto laborioso reconhecerão o quanto esta meditação deve às análises precedentes destes autores.
- A abordagem do par mimesis -muthos deve ser iniciada pelo termo que simultaneamente lança e situa toda a análise, a saber, o adjetivo "poético", o qual, por si só, imprime a marca da produção, da construção e do dinamismo sobre todas as análises subsequentes, exigindo que os termos muthos e mimesis sejam considerados como operações e não como estruturas estáticas.
- Quando Aristóteles substitui o definido pela definição ao afirmar que o muthos é o agenciamento dos fatos em sistema, o termo systasis deve ser compreendido não como o sistema em si, contrariando a tradução de Dupont-Roc e Lallot, mas sim como o agenciamento ativo dos fatos, marcando assim o caráter operatório de todos os conceitos da Poética e identificando-a imediatamente com a arte de compor intrigas.
- A mesma exigência de dinamismo deve ser conservada na tradução de mimesis, de modo que, seja traduzida como imitação ou representação, o conceito deve ser entendido como a atividade mimética ou o processo ativo de representar, o que implica que as seis partes da tragédia enumeradas no capítulo VI não se referem às partes do poema como objeto, mas às partes da arte de compor.
- A insistência nesta marca dinâmica imposta pelo adjetivo poético é intencional e visa sustentar a defesa do primado da compreensão narrativa , ou seja, da atividade produtora de intrigas, em relação a qualquer espécie de estruturas estáticas, paradigmas acrônicos ou invariantes intemporais, tanto na historiografia quanto no relato de ficção.
A Definição Contextual da Mimesis e a Hierarquia da Tragédia
- A Poética de Aristóteles possui apenas um conceito englobante, o de mimesis, que é definido apenas contextualmente como a imitação ou representação da ação no meio da linguagem métrica acompanhada de ritmos, sendo especificamente analisada a representação da ação própria à tragédia, cuja definição se constrói não por diferença específica genérica, mas pela articulação em partes qualificadoras: intriga , caracteres, expressão, pensamento, espetáculo e canto.
- Estabelece-se uma quase identificação entre as expressões representação da ação e agenciamento dos fatos, assegurada por uma primeira hierarquização que prioriza o objeto da representação (intriga, caracteres, pensamento) sobre o meio e o modo, e uma segunda hierarquização interna ao objeto que coloca a ação acima dos caracteres e do pensamento, culminando na asserção de que a intriga é a representação da ação e constitui o princípio e a alma da tragédia.
- Esta equivalência textual impõe que se pense e defina a mimesis e o muthos um pelo outro, excluindo qualquer interpretação da mimesis aristotélica em termos de cópia ou réplica idêntica, visto que a representação é uma atividade produtiva que gera o agenciamento dos fatos, distanciando-se assim do uso platônico que, tanto em seu sentido metafísico quanto técnico, afasta a obra de artede seu modelo ideal.
- Ao contrário da mimesis de Platão, que opera em virtude do conceito de participação onde as coisas imitam as ideias , a mimesis de Aristóteles tem como único espaço de desdobramento o fazer humano e as artes de composição, de modo que a ação atua como o correlato noemático da atividade mimética regida pelo agenciamento dos fatos.
As Restrições Genéricas e a Dissolução da Oposição Modal
- É necessário considerar as restrições adicionais destinadas a dar conta dos gêneros constituídos da tragédia, comédia e epopeia, começando pela distinção entre comédia e tragédia, a qual não se refere à ação enquanto tal, mas aos caracteres submetidos a um critério ético de nobreza ou baixeza, representando os homens como melhores ou piores.
- A restrição que separa a epopeia da tragédia e da comédia merece atenção crítica , pois se baseia no modo de representação e não no objeto, o que contradiz o desígnio de considerar o relato como gênero comum; no entanto, o peso da análise aristotélica recai sobre o objeto, ou seja, o "o quê" da representação, permitindo observar que, na ordem da intriga, a epopeia segue as regras fundamentais do agenciamento dos fatos da tragédia, sendo o poeta essencialmente um compositor de intrigas independentemente do modo.
- Embora Aristóteles estabeleça inicialmente uma distinção nítida entre o narrador que fala diretamente e aquele que faz os personagens agirem, tal distinção modal não impede a reunião de epopeia e drama sob o título de relato em sentido amplo, definido como o objeto da atividade mimética, distinguindo-o do relato em sentido estrito ou diegesis.
- O próprio texto aristotélico atenua a diferença modal ao afirmar que a tragédia possui tudo o que a epopeia tem e que o espetáculo, elemento exclusivo do drama, é estranho à arte poética, podendo a tragédia realizar sua finalidade e qualidade através da simples leitura , dispensando o movimento físico.
- Inversamente, a epopeia aproxima-se do drama quando o poeta se apaga atrás de seus personagens, como faz Homero, que é louvado por sua arte de deixar os personagens agirem e falarem em nome próprio, demonstrando que as intrigas no relato em versos devem ser construídas em forma de drama, fazendo com que o modelo dramático qualifique lateralmente o narrativo.
A Primazia da Ação sobre o Caráter na Lógica Poética
- A última restrição refere-se à subordinação dos caracteres à ação, o que contrasta com a perspectiva moderna do romance e a tese de Henry James, que confere ao desenvolvimento do caráter um direito igual ou superior ao da intriga, ou a observação de Frank Kermode de que o desenvolvimento de um caráter exige mais narrativa.
- Aristóteles é taxativo ao afirmar que a tragédia é representação não de homens, mas de ações, de vida e de felicidade , e que sem ação não haveria tragédia, embora pudesse havê-la sem caracteres, uma posição que encontra paralelo na semiótica narrativa contemporânea derivada de Propp, que reconstrói a lógica narrativa a partir de funções ou segmentos abstratos de ação e não de personagens.
- Ao dar primazia à ação sobre o personagem, estabelece-se o estatuto estritamente mimético da ação, diferenciando-o da ética onde o sujeito precede a ação na ordem das qualidades morais; na poética, é a composição da ação pelo poeta que rege a qualidade ética dos caracteres, selando definitivamente a equivalência entre a representação da ação e o agenciamento dos fatos.
Ver online : Paul Ricoeur
RICOEUR, Paul. Temps et récit I. Paris: Éd. du Seuil, 1983.