Página inicial > Hermenêutica > Ricoeur (TR1) – A intriga: um modelo de concordância
Tempo e Relato I
Ricoeur (TR1) – A intriga: um modelo de concordância
O tecer da intriga
A centralidade do mythos e a dialética entre ordem e tempo
- É imperativo suspender momentaneamente a indagação sobre o estatuto da mimesis , exceto na medida em que esta se define pela tessitura da intriga , para nos voltarmos resolutamente à teoria do mythos a fim de nela discernir o ponto de partida de nossa própria teoria da composição narrativa , sem jamais esquecer que a teoria do mythos é uma abstração derivada da definição da tragédia apresentada por Aristóteles na Poética, limitando-se, portanto, ao mythos trágico.
- A questão fundamental que perpassa toda esta investigação reside na possibilidade de estender e transformar o paradigma de ordem característico da tragédia para aplicá-lo à totalidade do campo narrativo, uma dificuldade que não deve paralisar o pensamento, visto que a superioridade do rigor do modelo trágico reside justamente em situar a exigência de ordem no patamar mais elevado da compreensão narrativa, instaurando de imediato um contraste extremo com a distentio animi de Agostinho.
- O mythos trágico ergue-se como a solução poética para o paradoxo especulativo do tempo, operando a invenção da ordem mediante a exclusão de características temporais, cabendo a nós a responsabilidade de extrair as implicações temporais deste modelo em conexão com a redefinição da mimesis, tornando plausível a articulação entre a distentio animi de Agostinho e o mythos de Aristóteles ao considerar que a teoria aristotélica enfatiza sutilmente o jogo da discordância no interior da concordância, uma dialética interna à composição poética que converte o mythos trágico na figura inversa do paradoxo agostiniano.
A lógica da concordância: completude, totalidade e a ausência de acaso
- A concordância destaca-se inicialmente na definição do mythos como agenciamento dos fatos, caracterizada pelos traços de completude, totalidade e extensão apropriada, sendo a noção de todo, ou holos, o pivô de uma análise que se volta exclusivamente ao caráter lógico do agenciamento, distanciando-se da noção de tempo precisamente no momento em que a definição parece roçá-la ao estipular que um todo possui começo, meio e fim.
- A determinação do que constitui começo, meio ou fim ocorre exclusivamente em virtude da composição poética e não da experiência empírica, pois o começo define-se pela ausência de necessidade na sucessão anterior, o fim pelo que sucede a outra coisa por necessidade ou probabilidade, e o meio, embora pareça definido pela simples sucessão, possui no modelo trágico uma lógica própria regida pelo conceito de viravolta ou metabole e metabasis, que marca a passagem da fortuna ao infortúnio.
- A análise da ideia de todo privilegia a ausência de acaso e a conformidade às exigências de necessidade ou probabilidade que regulam a sucessão, subordinando a sequência temporal a uma conexão lógica onde as ideias de começo, meio e fim não são extraídas da ação efetiva, mas constituem efeitos do ordenamento do poema.
A extensão da obra e a exclusão do tempo cronológico
- A ação adquire contorno e limite, ou horos, apenas na intriga, o que implica uma extensão necessariamente temporal, não referente ao tempo dos eventos do mundo , mas ao tempo da obra, onde a exigência interna de permitir a viravolta do infortúnio à felicidade , ou vice-versa, fornece a delimitação satisfatória da extensão mediante o encadeamento verossímil ou necessário dos eventos, excluindo-se os tempos mortos e irrelevantes, como nota Else a respeito do Édipo Rei, onde o mensageiro surge no momento exato requerido pela intriga.
- O tempo cronológico é não apenas desconsiderado, mas excluído, fato evidenciado quando Aristóteles, ao tratar da epopeia, opõe a unidade temporal de um período histórico, que abarca eventos contingentes e desconexos, à unidade dramática de uma ação única que forma um todo completo, razão pela qual Homero é louvado por selecionar uma parte única da Guerra de Troia e determinar poeticamente seu início e fim, confirmando o desinteresse aristotélico pela construção do tempo em si mesma na elaboração da intriga.
A inteligibilidade da praxis e os universais poéticos
- Se o vínculo interno da intriga é lógico, trata-se de uma inteligibilidade apropriada ao campo da praxis e não da theoria, aproximando-se da phronesis ou inteligência da ação, pois a poesia constitui um fazer sobre um fazer, não um agir efetivo e ético, mas um agir inventado e poético que demanda o discernimento dos traços específicos desta inteligência mimética.
- A natureza intelectual da mimesis é atestada por Aristóteles ao vincular o prazer de contemplar imagens, mesmo as repugnantes, ao prazer de aprender e concluir o que é cada coisa, revelando um esqueleto inteligível do prazer da representação fundado no reconhecimento da forma, o que nos conduz aos universais poéticos caracterizados pela oposição entre o possível e o efetivo, e entre o geral e o particular.
- A distinção célebre entre a poesia e a crônica, tal como a de Heródoto, não reside na forma versificada ou em prosa, mas no fato de que uma narra o que aconteceu e a outra o que poderia acontecer, conferindo à poesia um caráter mais filosófico e nobre por tratar do geral, entendido como aquilo que um certo tipo de homem faz ou diz segundo a verossimilhança ou a necessidade, evidenciando que é o agenciamento dos fatos que deve ser típico e que a ação tem primazia sobre os personagens , universalizando-os.
O ato judicatório da composição e a emergência da verdade
- A objeção de circularidade entre o possível e o necessário resolve-se ao assumir, na esteira de teóricos narrativistas da história como Louis O. Mink, que o peso da inteligibilidade recai sobre a conexão estabelecida entre os eventos, ou seja, sobre o ato judicatório de tomar junto, pois pensar um vínculo de causalidade, mesmo entre eventos singulares, constitui já um ato de universalização.
- A distinção entre intrigas unificadas e intrigas episódicas confirma que a universalidade deriva da ordenação que confere completude e totalidade à obra, condenando-se não os episódios em si, mas o seu caráter desconexo onde a sucessão ocorre uns após os outros e não uns por causa dos outros, estabelecendo a conexão interna como a semente da universalização que faz surgir o inteligível do acidental.
- O poeta define-se essencialmente como um criador de intrigas e não de versos, pois sua atividade de representação incide sobre ações, fazendo com que mesmo eventos reais, ao serem poetizados, sejam tratados sob a ótica do que poderia acontecer na ordem do verossímil, equilibrando a equação entre fazedor de intriga e imitador de ação.
- A dificuldade residual acerca da verificação do encadeamento causal na composição poética sugere que a atividade mimética não apenas vê o universal, mas o faz surgir ao compor a ação, pressupondo um conceito prospectivo de verdade onde inventar é reencontrar, tema que exige uma teoria da mimesis mais desenvolvida do que sua simples equiparação ao mythos.
Ver online : Paul Ricoeur
RICOEUR, Paul. Temps et récit I. Paris: Éd. du Seuil, 1983.