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Tempo e Relato I
Ricoeur (TR1) – O contraste da eternidade
As aporias da experiência do tempo
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A objeção crítica contra a leitura fragmentada do livro XI das Confissões, que isolaria artificialmente as seções analíticas da grande meditação sobre a eternidade, permanece válida e exige superação, uma vez que a tese de que o tempo reside na alma e nela encontra seu princípio de medida (distentio animi), embora possua autonomia suficiente para responder às aporias internas do ceticismo sobre a mensurabilidade do tempo, carece ainda do sentido pleno que somente o contraste com a eternidade pode fornecer; tal contraste não se limita a uma função lógica, mas opera três incidências maiores: impõe uma ideia-limite à especulação, intensifica existencialmente a experiência da distentio e convoca essa experiência a uma autotranscendência hierárquica interior.
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A meditação agostiniana articula de maneira indivisível a louange bíblica, a partir do primeiro versículo da Genese, e a especulação filosófica de matriz platônica e neoplatônica, estabelecendo um contraste imediato e radical onde a anterioridade da eternidade sobre o tempo não deriva deste por dedução, mas impõe-se como uma diferença absoluta entre o Ser imutável e o ser que varia e muda; essa perplexidade do intelecto diante do "como" da criação divina, realizada não por uma voz física (vox) que nasce e morre, mas pelo Verbo (Verbum) eterno e simultâneo, institui uma negatividade ontológica sobre o tempo, marcando a temporalidade com o selo da deficiência, da fuga e da passagem, em oposição à permanência da Palavra criadora.
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O enfrentamento das objeções formuladas por maniqueus e certos platônicos acerca da ociosidade divina antes da criação permite aprofundar a negatividade ontológica do tempo, pois, ao afirmar que Deus não fazia nada antes de criar o céu e a terra e que o próprio tempo é uma criatura divina, Agostinho define o "antes" da criação como um vazio absoluto de tempo e uma ausência de eventos, de modo que o tempo surge cercado pelo nada; a verdadeira anterioridade divina deve ser compreendida não como precedência cronológica, mas como excelência e altura (celsitudo), onde o simul stans da eternidade, o sempre estável, supera o fluxo transitório sem se submeter às categorias de passado ou futuro, revelando que a passagem do tempo pressupõe ontologicamente a estabilidade daquilo que a sobrepassa.
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A relação entre eternidade e tempo não se restringe à função kantiana de uma ideia-limite, mas opera um retentissement existencial — conforme a terminologia de Eugene Minkovski — que transforma a falta de eternidade em uma tristeza do negativo e eleva a experiência da distentio animi ao nível da lamentação e da prece ; a descoberta da "região da dessemelhança", conceito herdado de Platao via Plotino, adquire em Agostinho um relevo dramático ao expressar a diferença ontológica radical que separa a criatura do Criador, fazendo com que a distentio deixe de ser apenas uma solução técnica para a medida do tempo e se torne o dilaceramento doloroso da alma privada da estabilidade do eterno presente, oscilando entre o horror da dessemelhança e o ardor da semelhança.
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A dialética interna do tempo é reconfigurada sob o horizonte da eternidade, de modo que a intentio não designa mais apenas a antecipação cognitiva de uma ação futura, mas a tensão escatológica do homem interior em direção ao alto, conforme a leitura agostiniana de Paulo na carta aos Filipenses, onde o esquecimento do passado equivale ao abandono do velho homem e a tensão para a frente visa a palmeira da vocação celeste; nesse contexto , as metáforas de dissolução, agonia, banimento e noite , analisadas por Stanislas Boros, demonstram que a temporalidade é vivida como uma queda e uma dispersão que só ganham sentido a contrario pela simbólica da recolha e da luz eterna, transformando a distentio de argumento especulativo em experiência viva e sofrida da condição humana decaída.
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A terceira incidência da dialética entre eternidade e tempo reside na hierarquização dos níveis de temporalização, fundada na instrução pelo Mestre interior que permite à alma, através da escuta do Verbo, empreender um movimento de retorno e reconhecimento que, embora não anule a condição temporal nem a narração peregrina dos livros I a IX das Confissões, as orienta em direção à estabilidade; assim, a teoria da narrativa não deve buscar apenas a des-cronologização ou a logicização do relato, mas sim o aprofundamento da própria temporalidade, pois a confissão do outro do tempo — a eternidade — é a condição necessária para que a experiência humana não seja abolida, mas hierarquizada e tensa (secundum intentionem) contra a pura dispersão (secundum distentionem).
Ver online : Paul Ricoeur
RICOEUR, Paul. Temps et récit I. Paris: Éd. du Seuil, 1983.