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Mário Martins – Introdução histórica à vidência do tempo e da morte

sexta-feira 4 de julho de 2025

Não um problema exclusivo da Idade Média, embora nela encontrasse eco enorme. Antes problema de choque para todos os homens — o animal que mais escapa à fascinação do momento efêmero e que, por isso mesmo, melhor entra na consciencialização do tempo e da morte, sentindo em si a ferida estranha do ir passando.

Como na água-forte de Alberto Dürer Dürer Dürer, Albrecht (1471-1528) , o homem e a morte cavalgam lado a lado. A morte e o tempo, simbolizado na ampulheta fatal na mão descarnada.

E assim, vivemos ilaqueados pelo sentido subterrâneo do tempo irreversível. Subterrâneo, mas não menos lucidamente vivido. E parece dos nossos dias a voz de Horácio: Eheu, fugaces, Postume, Postume, labuntur anni...

A vida unida ao tempo, entre o ser e o não ser. Como o sonho que é e não é. E como o sono, em que se vive, assemelhando-se contudo à morte.

Daqui a tese calderoniana de que la vida es sueño, tese que tantos colocam nas entranhas do pensamento de Espanha — espécie de balanço final da sua história, ao voltar da conquista do mundo como Dom Quixote das suas aventuras. Balanço final, escreve Pablo Cepeda Calzada, em La Vida como Sueño (Madrid, 1964) e também algo de despedida e declaração testamentária.

O tempo, portador da morte. A própria morte que está chegando, na rapidez silente dos momentos breves — tão breves que o chegar quase equivale a partir. E ela, a morte, nos envolverá a todos, como a Noite, de Fernando Pessoa Fernando Pessoa Pessoa, Fernando (1888-1935) , enfermeira antiquissima sentada à cabeceira dos deuses moribundos e que os viu também nascer e sorriu, por tudo lhe parecer falso e inútil:

Quando eu morrer,
Quando me for, ignobilmente como toda a gente,
Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente,
Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos,
Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece...

E este pensamento da Mensagem: a vida é metade de nada. Existimos e desexistimos. Estamos a morrer ao longo das horas moribundas. Na Idade Média, esta reflexão atroz fez nascer a Dança Macabra (e dela falaremos em páginas longas) e um vasto mundo de obras marcadas por ela, pois o sentido da morte dá aos homens a profundidade angustiada que falta ao animal. E é talvez um eco inconsciente da Dança Macabra que põe nos lábios horádanos de Ricardo dos Reis (um dos heterônimos de Fernando Pessoa Fernando Pessoa Pessoa, Fernando (1888-1935) ) este sarcasmo doloroso: Pesa sobre os homens o decreto do fim certeiro. Mas eles riem. Felizes os néscios. Sus! Deixai / brincar os moribundos!

Antes de Fernando Pessoa Fernando Pessoa Pessoa, Fernando (1888-1935) , escreveu Baudelaire Baudelaire Charles Baudelaire (1821-1867) a Danse Macabre, ancorada no amor, como um navio a apodrecer no cais. E nos versos de Une Charogne, o poeta atinge a lucidez dramática do ascetismo medieval, mas lucidez sem esperança que valha. E o mesmo olhar fixo na ampulheta do tempo a esvaziar-se: «Remember! Souviens-toi! prodigue! Esto memor!» E recorda-te de quê?:

Souviens-toi que le Temps est un joueur avide
Qui gagne sans tricher, à tout coup! c’est la loi.
Le jour décroît; la nuit augmente; souviens-toi!
Le gouffre a toujours soif; la clepsydre se vide.

«Uma geração passa e outra lhe sucede, mas a Terra permanece sempre», diz o Eclesiastes. Temos, aquí, o tempo e a morte. E são precisamente estas e outras palavras do Eclesiastes que servem de epígrafe à Fiesta, de Hemingway (para não falarmos de O Tempo e o Vento, onde Erico Veríssimo historia a família dos Cambarás, uns a nascer, outros a morrer e todos a lutar pelo vento que passa).

Nas Verdes Colinas da África, também de Hemingway, o mesmo pensamento do passar dos homens, mas aqui em oposição à permanência vasta das águas do Gulfstream, já velhas quando os homens nasceram. Elas viram chegar as naus de Colombo, os barcos dos ingleses, depois a supremacia dos americanos. E tudo foi morrendo.

Todos os sistemas, diz ele, de governo, de riqueza, de pobreza, de martírio, de sacrifício, de venalidade e de crueldade desaparecerão um dia, como a carga de cinco barcaças de lixo, despejadas na água azul do Gulfstream, ficando ao de cimo «os restos flutuantes: palmas, rolhas, garrafas, lâmpadas usadas, à mistura com um ocasional preservativo, um espartilho a boiar, as folhas rasgadas dum caderno escolar, um cão já inchado, o rato ocasional, o g ato vadio». E a dez milhas dali, as águas, sem fluxo visível, continuam tão limpas e azuis como dantes. Entretanto, na amplidão do tempo, «as palmas das nossas vitórias, as lâmpadas das nossas descobertas e os preservativos vazios dos nossos grandes amores flutuam sem significado, sobre uma única coisa durável — a corrente».

Por Quem os Sinos Dobram desenrola-se também sob o signo da morte, tendo no pórtico uma passagem de John Donne, com estas palavras derradeiras sublinhadas, aqui e além, pelo próprio Hemingway: «any man’s death diminishes me, because I am involved in Mankind; And therefore, never send to know for whom the bell tolls; It tolls for thee». Quando os sinos dobram a finados, dobram também por mim e o mistério da morte envolve-nos a todos. E em vão Robert Jordan e Maria procuram, no amor, uma aliança contra a morte. De telhas abaixo, não há nenhuma aliança válida contra a morte e Hemingway soube-o, dramáticamente, ao buscá-la como quem busca um inimigo inexorável, para tudo acabar mais depressa.

Mas ela, a enigmática porta do nosso destino, abrir-se-ia por si mesma, nem valia a pena forçá-la. Foi exactamente nessa hora que Hemingway morreu para o tempo, ao entrar num onde sem onde (permitam-nos a expressão), em que não há antes nem depois. Ou melhor, foi então que o tempo morreu para Hemingway. Para ele e com ele. O tempo e a morte, porque, bem no fundo, tudo é um. E para o autor da Fiesta (assim como depois para nós) cumpriu-se o versículo do Apocalipse que tanto impressionava Kirillov, nos Demônios: «E o anjo [...] jurou que não haveria mais tempo». Kirillov escuta estas palavras dos lábios de Stavroguine e explica: Não haverá mais tempo por ele já não ser preciso. E onde o porão? Em parte nenhuma. O tempo não é um objecto mas um conceito. Desaparecerá do entendimento. Não existe, em si mesmo. Pouco antes, Kirillov afirmara também que a morte não existia.

Porém tudo acontece como se, de facto, existissem a morte e o tempo, duradouros e palpáveis como o mundo. E no tempo e na morte (o primeiro a introduzir as personagens no palco do mundo e a segunda a fazê-las sair) enraíza muito do que há de melhor na literatura e na arte. De melhor, de mais reflexivo e de mais pungente, como no «pranto» de Garcia Lorca pela morte do toureiro Ignacio Sánchez Mejias.

Por isso mesmo, interessa-nos o que pensaram do tempo e da morte os escritores medievais, entre eles o anônimo autor do Horto do Esposo, os poetas do Cancioneiro Geral, Gil Vicente Gil Vicente Gil Vicente (1465-1536) e os comediógrafos espanhóis seus herdeiros, os ascetas e pregadores portugueses dos séculos XVI e XVII, os dramaturgos Diogo Teive e Luís da Cruz, S. J., clássicos como João de Barros, Antonio Ferreira, Camões, Andrade Caminha e outros autores que a seu tempo nomearemos. E se pomos de lado o bracarense Paulo Orósio (séc. V) e a sua teoria da relatividade temporal da história, é porque já falámos dele nas Correntes da Filosofia Religiosa em Braga (Porto, 1950).

Não nos esquecemos das gravuras macabras, em torno da morte — árvores escassas duma floresta que só os especializados poderão percorrer em todas as direções. Nelas se inspirou Gil Vicente Gil Vicente Gil Vicente (1465-1536) para alguns dos seus autos mais famosos. Com elas se familiarizou ao rezar pelos Livros de Horas impressos, onde vinha a Dança da Morte.

Filosofia heideggeriana de desamparo? Não bem isso. Filosofia de esperançoso desespero. E aqui, afastamos qualquer hipótese de frases paradoxais ou maneiristas. Desesperado do mundo material das sombras moribundas e da miséria das coisas que acabam, o homem agarra-se, como um náufrago, à substância do para-além-das-sombras, procura os valores que transcendem o tempo e a morte. Como nota Calderón de la Barca, no mito de Segismundo, no se pierde / el hacer bien, aun entre sueños.

A maneira de Tolstoi a propósito de Guerra e Paz, pedimos ao leitor para não procurar, nestas páginas, o que não quisemos ou não pudemos lá pôr. Tudo tem limites e os trinta e tal capítulos desta obra em dois volumes chegam perfeitamente para agora.

Mais tarde, desejaríamos escrever outro livro na mesma linha dramática. Talvez o leitor lá descubra o que não dizemos aqui.

Umas vezes, seguimos a linha cronológica dos homens e dos acontecimentos. Noutros casos, arrumamos tudo por assuntos, prescindindo um pouco do que poderíamos chamar «geografia do tempo». Este método alternado de exposição é o que oferece menos inconvenientes. Através dele, subimos à origem das coisas, para melhor conhecermos o seu desenvolvimento. Tudo tem a sua linhagem e, dentro dela, se explicam e exprimem os homens e os acontecimentos.

Alguns capítulos servem de «guia» para esclarecer outros menos acessíveis. Estaria neste caso Gil Vicente Gil Vicente Gil Vicente (1465-1536) e as gravuras dos Livros de Horas. Contudo, preferimos reduzi-lo a apêndice, no final da obra, apesar da importância que lhe damos, e para lá remetemos o leitor ao entrar no capítulo Gil Vicente Gil Vicente Gil Vicente (1465-1536) e as figuras da Dança Macabra dos Livros de Horas.

Desde já, pedimos ao leitor para se lembrar que o livro Do Tempo e da Morte não pretende ser uma diversão, mas sim uma sondagem trágica às vivências dos que caminham conscientemente do «reino das sombras» para o reino do real. E como Villon, na Balada dos Enforcados, pedimos-lhe também desculpa de tudo: «Excusez nous». No fim de contas, nada é perfeito neste mundo.


MARTINS, Mário. Introdução histórica à vidência do tempo e da morte. Braga : Livraria Cruz, 1969