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Introdução histórica à vidência do tempo e da morte

Mário Martins – O tempo em "Demônios" de Dostoiévski

sexta-feira 4 de julho de 2025

Mais uma vez, abramos Os Demônios, de Dostoiewski. Kirillov, engenheiro e teórico do suicídio, batia com uma bola de borracha no chão e fazia-a saltar até ao tecto, entre os gritos entusiastas de uma pequerrucha que gritava: Bola, bola!

A bola rebolou para debaixo dum armário, Kirillov deitou-se no soalho e estendeu os braços para encontrar o brinquedo. Foi nesta posição que Stavroguine o encontrou.

— Queres chá?, perguntou-lhe Kirillov.

Stavroguine vinha encharcado e bebeu o chá quente. Pouco depois, trava-se um diálogo em torno dum duelo à pistola, quase à queima-roupa, com Gaganov. Stavroguine pertence à raça dos que não têm medo de morrer. Kirillov, embora na miséria, mostra-lhe um belo revólver que depois irá concretizar uma filosofia destrutora.

Um minuto de silêncio pensativo e Stavroguine pergunta misteriosamente ao engenheiro se continuava ainda com as mesmas ideias. Kirillov responde laconicamente que sim.

— Então, quando?, insiste Stavroguine.

— Quando mo disserem.

O seu olhar está calmo e ambos falam do suicídio como de libertação. Sobretudo para Kirillov, trata-se duma afirmação absoluta. A frio.

Embora pareça absurdo, o engenheiro gosta de crianças e da vida. Ao ouvir-lhe afirmar este amor pela vida, Stavroguine pergunta-lhe espantado:

— No entanto não tens tu a decisão de dar um tiro nos miolos?

— E que tem isso?... Para quê misturar duas coisas diferentes uma da outra?... A vida existe e a morte não existe.

— Ah!... já crês na vida eterna, no outro mundo?

— Não, mas sim na vida eterna deste mundo. Há momentos em que o tempo pára de repente, para dar lugar à eternidade.

— Esperas chegar a tal momento?

— Espero.

— Duvido que em vida isso seja possível.

Estas palavras foram ditas por Stavroguine, sem nenhuma intenção irónica. Pronunciou-as lentamente e com ar pensativo.

— Segundo o Apocalipse, o anjo assegura que deixará de haver tempo, observou ele em seguida.

— Eu sei. Isso é bem verdade. Quando todos os homens tiverem atingido a felicidade, não haverá mais tempo, porque ele já não será necessário. Ê um pensamento muito exacto.

— Nesse caso, onde é que o porão?

— Não o porão em parte nenhuma. O tempo não é um objecto, mas uma ideia. Tal ideia apagar-se-á do espírito.

Aqui temos: O tempo não existe em si mesmo. É um conceito mental, a consciência do antes, do agora e do depois. Psicologicamente, existe só na medida em que lhe prestamos atenção, na medida em que algo muda dentro ou fora de nós e nos apercebemos dessa mudança.

Dostoiewski recorda-nos algures o último minuto dum condenado à morte. Como espaço tão breve chegou para pensar em tanta coisa! E como se tornou comprido, esse minuto, pela atenção que o condenado lhe prestou!


MARTINS, Mário. Introdução histórica à vidência do tempo e da morte. Braga : Livraria Cruz, 1969