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Sampaio Bruno – O Brasil Mental

domingo 23 de fevereiro de 2025

O BRAZIL MENTAL, ESBOÇO CRITICO

Excertos do estudo de Maria Helena Varela, "O Heterologos em língua portuguesa"

Conhecer as ideias dominantes da intelligentsia de um país é condição necessária e suficiente para compreender a sua realidade social; daí o Brasil mental, para o autor portuense, conter e explicar o Brasil social, sendo esta precedência não só lógica como indispensável, já que toda a prática pressupõe uma teoria. Assim, "o republicanismo fluminense é a simples aplicação do positivismo parisiense" (O Brasil mental, p. X), dirá. Analisando o Brasil mental, Bruno verifica que aí dominam três correntes culturais: o positivismo, o monismo alemão e o evolucionismo de Spencer, embora a primeira tenha tido repercussões culturais e políticas de maior vulto. Entre nós, embora tenha inspirado um círculo de intelectuais que no Porto fundou a revista Positivismo, sob a direção de Julio de Matos, não passou do positivismo atenuado "no depuramento homeopático de Littré, e, só mais tarde (e sem repercussão no grande público), é que Teófilo Braga com o seu Systema de sociologia aceitou as conclusões ulteriores" (Op. cit., p. 103). Enquanto isso, "no Brasil engoliu-se tudo, inteiramente e de pancada. Insignificantes manifestações de litreísmo foram as que surgiram (...). Absorveu-se tudo, liturgia como o resto (...) oficiaram de pontificai Teixeira Mendes e Miguel de Lemos" (Op. cit., p. 103-104). Ora "em Portugal, isto era impossível. Complicada com estas paródias culturais a nova doutrina morreria de ridículo. Ninguém se atreveu a tanto" (Ibidem).

Na sua crítica ao positivismo brasileiro, Bruno insiste nos exageros ortodoxos e fanáticos da religião da humanidade no Brasil. A degenerescência do idealismo alemão por um lado, e o cientificismo dominante por outro, estariam na base da expansão daquele sistema que, em Portugal e no Brasil, encontrou terreno fértil dada "a sua acessibilidade (...) e agnosticismo, acariciando a preguiça cerebral portuguesa-brasileira" (Op. cit., p. 101). A república no Brasil, "representou-a a doutrina filosófica que, depois da concepção religiosa dos jesuítas, foi a que mais fortemente disciplinou uma fração dos espíritos humanos" (Op. cit., p. 291). Sistema católico sem Deus, "o positivismo não sofre a individualidade (...) como com os jesuítas, ’os ilustres inacianos’ — consoante a esses antecessores se lhes chama em linguagem positivista — a fisionomia literária é a mesma" (Op. cit., p. 106). E, contudo, "os adeptos crescem, disseminam-se pelo grande mundo; já não são conventículo de supersticiosos; seita de fanáticos. Começam a ser um pouco toda a gente" (Ibidem). Uma nova escolástica filosófico-científica em nome dos fatos e das leis, da ordem e do progresso, parece suceder, naturalmente, à escolástica teológica em Nome de Deus que o jesuitismo difundira nos dois países de língua portuguesa. Tanto mais que a sua acessibilidade e o rigor científico aparente legitimavam as novas aspirações republicanas nos dois países, abalados por conturbados anos de monarquia. O positivismo parecia ser a filosofia espontânea dos republicanos de Portugal e do Brasil.

No seu prospectivismo, Sampaio Bruno Sampaio Bruno parece recear, porém, a secura descrente das teorias positivistas, cujo mecanicismo redutor ameaçava cristalizar a história, reduzindo-a a uma sucessão mecânica de fatos e leis, dissolvendo as mais profundas aspirações humanas num progresso anônimo, na ideologia de toda a gente. Religião católica sem Deus, a ortodoxia positivista ignorava as questões metafísicas, considerando-as inúteis e absurdas. "Purificar a ciência do espírito metafísico e concomitantemente dela purificar também a filosofia, dando-lhe a precisão do método científico" (Op. cit., p. 109), seria, pois, o objetivo do positivismo. Não espiritualista, mas ortodoxo e dogmático, "o sistema religioso de Comte tudo explica pelos preceitos da filosofia materialista" (Op. cit., p. 198), "renunciando à indagação da essência das coisas; numa palavra, a todas as questões que, em metafísica, pertencem à categoria do absoluto" (Op. cit., p. 112).

Na tentativa de construir os fundamentos de um humanismo científico em que os valores da ciência adquiririam um sentido absoluto, o positivismo apoiava a sua noção de progresso na lei dos três estados, símbolo mecanicista e redutor da evolução histórica. Segundo esta lei, após o estado teológico e metafísico, o termo da evolução social seria a ciência positiva, fase em que o homem "renuncia a procurar a origem e o destino do universo e a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para se prender unicamente a descobrir, pelo uso bem combinado do raciocínio e da observação, as suas leis efetivas, isto é, as suas relações invariáveis de sucessão e semelhança" (Ibidem). Ora, para Sampaio Bruno Sampaio Bruno , a lei dos três estados "não é falsa, mas inexata, imperfeita, inacabada e incompleta" (Op. cit., p. 151); "não serve porque é de menos para medir o que é demais" (Op. cit., p. 135). "A natureza é demasiado larga para estas generalizações sintéticas", dirá, "as quais, para serem amplas, não podem ser precisas" (Op. cit., p. 116). "O espírito humano, de todos os tempos há seguido simultaneamente e não sucessivamente as diferentes vias indicadas" (Op. cit., p. 118); "o homem não é sucessivamente teólogo na sua infância, metafísico na sua mocidade e físico na sua virilidade; pois que, em todas as idades, ele se ocupa de Deus, faz abstrações e aufere conhecimentos positivos" (Op. cit., p. 119). Schopenhauer, Hartman e tantos pensadores não deixaram de ser metafísicos nebulosos e espíritos positivos, havendo ciências que não passaram pelos três estados, e outras onde dominam ainda verdadeiras hipóteses metafísicas. Tudo isso, para o pensador portuense, demonstrava que a metafísica, em vez de se extinguir, tendia a desenvolver-se. "Nós não partimos da metafísica para a positividade, mas, pelo contrário, da positividade para a metafísica" (Op. cit., p. 160).


A doutrina positivista era, pois insuficiente e errônea, quer científica, quer ética, quer politicamente, porquanto, "como todo delírio sistematizado" (Op. cit., p. 257), não hesitava perante os processos tradicionais, ignorando os direitos humanos, a autonomia individual, e a liberdade de pensamento, na sua "metafísica dissolvente" (Op. cit., p. 257). Para Bruno, "o quadro dos direitos do homem, era então a base de todas as sociedades civilizadas (...) pertencendo de raiz, à metafísica revolucionária do século passado" (Op. cit., p. 258). Nos seus anseios metafísicos esotéricos, exacerbados após o exílio, as aspirações políticas do ideólogo portuense "têm uma origem e sabor pronunciadamente místico, em sua trilogia esotérica" (Ibidem), apoiando-se no temário sagrado de Saint Martin, liberdade, igualdade e fraternidade.

Crítico virulento de Comte, Sampaio Bruno Sampaio Bruno é um discípulo heterodoxo do positivismo, rebelde e dissidente dos seus modelos ortodoxos e fanáticos. Em 1889 para o publicista militante que era, a república ainda constituía um "recurso in extremis" (Op. cit., p. 466), sendo o Brasil esse país novo em que, apesar de tudo, a república era um fato, o alvo do seu prospectivismo. Mas, ainda antes de 1910, esses ideais seriam progressivamente silenciados, diluindo-se em aspirações messiânicas, frases sibilinas e esotéricas; porque, pensador livre como sempre foi, José Pereira Sampaio aspirou até ao fim da vida "aos arquétipos numinosos do céu dos filósofos", mas viveu "numa terra betuminosa" (Op. cit., p. 441), onde o erro e o mal escondem, sem cessar, a verdade e a liberdade.

Difícil se tornava articular um positivismo cientificista com as aspirações metafísicas em que se enlearam os portugueses, por mais avessos que se digam a estas especulações. Assim, apoiando-se na positividade metódica, o autor renega o positivismo sistêmico, talvez porque "a ciência não é o homem", ou seja, porque "na filosofia positiva há tudo, tudo menos filosofia" (Op. cit., p. 160). Para ele, "bruler n’est pas répondre. Renunciar não é resolver" (Op. cit., p. 155), porque "a necessidade metafísica, longe de tender a extinguir-se tende, pelo contrário, a desenvolver-se" (Op. cit., p. 159). Perante a defenestração da metafísica operada pelo positivismo, Bruno parece optar, à maneira de Kant e Heidegger nos nossos dias, pela "reforma da metafísica" (Op. cit., p. 268). Entre as ambições metafísicas de Antero de Quental, o anti-positivismo de Cunha Seixas e Domingos Tarroso, as indecisões teoréticas de Oliveira Martins, e o positivismo oficial de Teófilo Braga, Sampaio Bruno Sampaio Bruno procurará, singularmente, conciliar positividade e metafísica. Por mais crítico do positivismo, distingue entre sistema doutrinário e método, positivismo e positividade. Porque, se o rigor científico e a objetividade são importantes para o conhecimento, o método de observação dos fatos sobre o qual deve especular a razão, sendo produtivo no domínio das ciências e da filosofia natural, é incompleto e estéril se se transformar em sistema ortodoxo.

Heterodoxo, Bruno reconhece os méritos de uma positividade não positivista na observação dos fatos e na análise das ideias; reagindo contra o positivismo doutrinário, permanecerá, tanto quanto possível, fiel a uma positividade epistemológica. "Aplicar à filosofia o rigorismo científico — eis a reforma que urge completar; mas prosseguindo sempre na investigação das soluções desconhecidas, conforme assim se procede em toda outra e qualquer ciência", porque "negar apriori a possibilidade duma solução, ou apelar aposteriori para a não resolução da questão (...) é insuficiente e temerário" (Op. cit., p. 266). "A observação e a experiência, o método das ciências positivas deve ser transportado para a filosofia" (Op. cit., p. 267), porque "a filosofia moderna não é, por certo, um amontoado de frases balofas e de especulações inúteis. Deve acompanhar a ciência, e à ciência reputar como mãe. Mas também, por outro lado, as questões metafísicas não serão repudiadas; e, tão somente (...) a metafísica passará, dum jogo de abstrações ocas, a um complexo de doutrina científica, discutidas, analisadas as afirmações pro e contra certos e determinados problemas" (Ibidem). "A filosofia moderna", para Sampaio Bruno Sampaio Bruno já não é "a mãe do saber", à maneira aristotélica-escolástica, "vivendo do éter do pensamento, coberta de majestade e plena da ignorância mais crassa dos fatos positivos" (Ibidem). "Cúpula do edifício científico", não deve esquecer que "não poderá haver cúpula sem colunatas" (Op. cit., p. 268).

Ora, esta filosofia diurna, como mais tarde lhe chamaria Bachelard, se renuncia a ser ave de Minerva, predispondo-se a acompanhar as ciências positivas, não poderá, contudo, rejeitar as aspirações metafísicas, por mais misteriosas que se apresentem, porquanto inevitáveis à condição humana. Até porque "renunciar não é resolver". Ao pensamento científico de Bruno impõe-se pois:

analisar, juntar elementos disseminados, acumular observações separadas; trilhar a via empírica da realidade natural, continuamente apoiando nos dados fornecidos pela ciência, e continuamente corrigindo as especulações apriori; (...) não criar sistemas transcendentais, visões encantadas, mas sim ir, a pouco e pouco, caminhando sempre ao lado da positividade. Não mutilar, mercê do erro simétrico, a nossa alma, não a truncar. — a título de a depurar. Mas avançar lentamente nessa estrada humana e clara, provisoriamente, em conflito de afirmação contra negação, até que acordos, provisórios igualmente, se sucedam; (...) tal deve ser (...) o caminho da filosofia moderna, o caminho de toda e qualquer sã filosofia (...) firmando-a ao mesmo tempo na natureza e na razão (Op. cit., p. 268-269).