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Les Cahiers d’Hermès I

Albert-Marie Schmidt : Alta ciência e poesia francesa no século XVI (3)

A gnose de Pierre de Ronsard

A Predestinação Saturnina e a Sensibilidade aos Intersignos
  • Ronsard, cuja existência   se desenrola sob a pesada influência de Saturno, manifesta desde a infância dons mediúnicos excepcionais que o tornam arisco, desconfiado, triste e melancólico, predispondo-o a respirar o perfume musical das solidões e a provocar continuamente o aparecimento de intersignos, independentemente do ambiente em que se encontre. Movido por uma ambição de descobrir os segredos da Natureza   e dos Céus seguindo os passos de Orfeu, ele não apenas interpreta os avisos cósmicos que escapam aos profanos, mas também suscita ativamente presságios que o instruem e aterrorizam, revelando uma conexão direta e por vezes dolorosa com o invisível.
  • A antipatia instintiva e visceral que nutre por certas criaturas, especificamente o Gato, fetiche dos egípcios e companheiro das feiticeiras, provoca-lhe transtornos desastrosos que se manifestam fisicamente através de tremores nos nervos e nos membros, ódio ao olhar do animal e uma necessidade   irreprimível de fuga, rejeitando as interpretações benignas de seus servidores que viam no afago de um   gato branco ou na presença de um gato solitário o fim   de misérias, para, ao contrário, afirmar com convicção profética que o animal adivinho anunciava uma penosa e longa doença, a qual de fato se concretizou em febre persistente por onze meses.
  • A confirmação de sua fatalidade astral e a validação de seus temores supersticiosos estendem-se para além da zoofobia, englobando o reino vegetal e os incidentes domésticos, como demonstrado pela morte   inesperada de um loureiro, planta solar e apolinea cujas folhas propiciam o êxtase   poético, evento que lhe anunciou longos sofrimentos, e pelo acidente fatal de um de seus homens, cuja agonia após um coice na cabeça foi interpretada por Ronsard não como um acaso infeliz, mas como um escândalo malfadado prestes a descer sobre sua própria cabeça.
O Combate   Mágico e a Defesa contra os Daimons
  • A alma   do poeta, obscurecida desde a adolescência por uma visão   direta do mundo   dos Daimons, termo que ele grafava arcaicamente por razões etimológicas, impelia-o a adotar medidas de proteção ativa análogas às tradições mágicas observadas por figuras como Paracelso e Jean-Jacques Trivulce, o qual, segundo testemunhos de Rabelais   e Brantôme, empunhava sua espada na hora extrema para afastar entidades malignas; de modo semelhante, Ronsard utilizava o poder   das pontas e das lâminas de ferro, convicto de que tais espíritos temem ser   cortados e que nada   é tão eficaz contra suas investidas noturnas quanto a ameaça da espada nua.
  • A eficácia de tais práticas defensivas foi comprovada precocemente por Ronsard durante uma travessia   noturna na campanha vendomoise, onde, abrasado por uma paixão juvenil, viu-se cercado pela aterrorizante Mesnie-Hellequin ou Caça-Selvagem, liderada não pelo arquidemônio Hugues, mas pelo espectro de um velho usurário; nessa ocasião, superando o medo opressivo que lhe percorria os ossos, e inspirado por uma providência divina, ele sacou sua espada para cortar o ar ao seu redor, criando uma espiral protetora que rompeu o ataque e frustrou as grosseiras tentativas de sedução da turba infernal.
A Síntese da Gnose   Poética e a Demonologia Ronsardiana
  • A obsessão   decorrente de suas experiências sobrenaturais motivou Ronsard a estudar apaixonadamente as memórias da Academia   Florentina e a alinhar-se aos princípios de sua gnose, mesclando teorias demonológicas eruditas, como as encontradas na Filosofia   Oculta de Cornelius Agrippa, com o tesouro de observações misteriosas e sabedoria   popular do campesinato e das feiticeiras vendomoises, construindo assim uma gnose poética do mundo análoga à revelação dos paracelsistas na França do século XVI e em oposição à resistência dos universitários.
  • Nesta cosmologia, que desafia a ortodoxia romana ao discernir a presença de Espíritos Elementares que não se enquadram na dicotomia estrita de Anjos   e Diabos, Ronsard postula a existência de entidades responsáveis por moldar a matéria   plástica do mundo, recusando-se a vê-los apenas como supostos de Satanás devido à complacência e gentileza que alguns demonstram; ele os concebe como animais superiores, mais delicados e ágeis que o homem  , criados simultaneamente aos elementos que regem e participando de um modo dificilmente concebível da bem  -aventurança divina, o que os situa em uma categoria ontológica híbrida e perigosa para o dogma eclesiástico.
  • Para mitigar o risco de censura inquisitorial, Ronsard utiliza uma retórica de dissimulação, alternando entre a exposição de opiniões correntes e a insinuação de suas convicções, sugerindo que Deus   criou esses cidadãos do ar para preencher os vazios do Universo  , atribuindo-lhes corpos leves de fogo   ou ar e, com grande temeridade, necessidades fisiológicas e emocionais humanas, incluindo o desejo, o medo, e a nutrição através do sacrifício de sangue   animal, apoiando-se na autoridade suspeita de Psellos para afirmar que nada lhes é próprio senão o corpo  , uma conclusão que ressoa com as teorias sobre os Espíritos Elementares que seduziriam Paracelso e o conde de Gabalis.
A Hierarquia Natural e a Alma do Mundo
  • Na tentativa de racionalizar a origem e a moralidade dessas entidades, Ronsard oscila entre a cautela e a audácia, ora adotando um tom cético sobre a natureza híbrida dos Daimons como monstros oriundos da união   de Anjos e mulheres, ora assumindo a responsabilidade de defini-los como seres de natureza comum aos homens e a Deus, habitantes dos confins da terra   e do céu, capazes de bondade ou maldade conforme suas afeições, uma proposição que, embora tenha confundido seus contemporâneos e evitado a condenação imediata por ser ele um defensor contra os huguenotes, seria mais tarde classificada como vã razão pelo jesuíta espanhol Delrio.
  • Rejeitando a abstração   da lei natural em favor do concretismo renascentista, Ronsard identifica nos Daimons a alma particular das coisas e a personalidade dos fenômenos, servindo como emanações individualizadas da natureza assistidas por uma nomenclatura pagã transliterada — como Dryades, Empusas, Faunos, Lamias, Lares, Larvas, Lemures, Naiades, Napeias, Nereides, Satyros, entre outros — que executam a repartição dos germes e a manutenção do ciclo vital no palácio subterrâneo da Natureza, onde trabalham metais e sementes para garantir que o Universo jamais tenha fim e rejuvenesça perpetuamente.
  • A cosmogonia de Ronsard culmina na visão de um Deus tríplice, Potência-Amor  -Paz, que pulsa no seio do mundo como um coração   caloroso lutando contra o princípio negativo do Discord, regulando a efusão de influxos estelares e atuando como a Alma que envolve e penetra todas as criaturas; contudo, essa Alta Ciência  , longe de apaziguar suas angústias, encerra-o em uma prisão lógica onde a intuição   averroísta de que ele é apenas um acidente da Alma do Mundo, destituído de dignidade ontológica individual, o conduz ao desespero e ao desejo da morte como médica e consolo das dores extremas.

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Les Cahiers d’Hermès. Dir. Rolland de Renéville. La Colombe, 1947