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Nietzsche

Ernst Bertram: Genealogia

Ensaio de Mitologia

 A Dialética da Revolução e a Permanência Ancestral

  • Todo   movimento revolucionário está sujeito a uma lei fundamental segundo a qual, ao atacar aquilo que perdura, contribui paradoxalmente para prolongar o que a tradição   oferece de melhor, sendo a revolução, que é antes de tudo intelectual, um   verdadeiro banho de juventude para aquilo que deve permanecer.
  • A grandeza legítima, na visão   de Nietzsche, exige invariavelmente um estágio prévio de ilegalidade   mal  -afamada e criminosa, de modo que Catilina preforma Cesar, e Cesar necessita ser   batizado por Catilina para não se fossilizar na mera legitimidade de um Augusto; assim, mesmo o rebelde integra-se e ocupa seu lugar legítimo no curso dos eventos ancestrais.
  • Aqueles que trazem as novidades mais sacrílegas são infalivelmente os mesmos que conservam e trazem à luz   as verdades mais antigas, pois o elemento verdadeiramente revolucionário e vivo de uma época é aquele que mergulha suas raízes ancestrais mais profundas no antigo princípio de que ninguém se levanta contra o rei, a não ser   o próprio rei.
  • Existe uma dupla refração singular e fatal na natureza   de Nietzsche que une o desejo impetuoso de conhecer à cegueira   demoníaca, levando o explorador dos mares longínquos do saber a perceber, muito cedo, o quanto ele próprio é condicionado por seus antepassados e tragicamente limitado à sua própria estirpe.
  • A doutrina do Eterno Retorno, descrita como uma pseudo-revelação tardia e um miragem misteriosa, simboliza o frisson e a vertigem diante do anel   que se fecha irrevogavelmente, confirmando o aforismo de Goethe de que quanto mais se conhece, mais se constata que tudo se move em círculo, reconduzindo o navegador espiritual ao seu único porto de partida.

 Conservadorismo Interior e o Respeito pela Duração

  • Aquele que prega a quebra das antigas tábuas e ensina o amor   pela terra   dos filhos mantém, no fundo de sua prédica, um respeito profundo pelos ancestrais, revelando um conservadorismo interior que o liga à ideia de valores   duráveis e hereditários, confessando que a arte   se vincula à piedade e que a duração na terra é um valor de primeira ordem.
  • O revolucionário da civilização, admirador da obra pacífica O Verão de São Martinho de Stifter, sonha com a grande duração dos valores humanos mais altos, reconhecendo na memória   a mãe   de toda duração humana e a criadora de toda comunidade, conforme a máxima de Goethe de que quem possui memória não deve invejar ninguém.
  • A gratidão da memória e o sentimento   de dependência biológica, intelectual e psicológica do passado constituem a base da existência do pensador, onde a duração, a continuidade e a tradição respeitosa são os fundamentos de toda cultura e humanidade, orientando Nietzsche desde a filologia clássica até as visões de Zaratustra.
  • A tradição não é apenas um refúgio para os estéreis, mas uma paixão e um imperativo de responsabilidade através dos séculos, uma vontade   de manter raças   solidamente encadeadas para frente e para trás ao infinito  , sendo a legitimidade venerada como um selo de continuidade e preparação disciplinar.

 A Nobreza do Sangue   e a Herança Fisiológica

  • Tudo o que é bom   é herança e o que não é herdado é imperfeito ou simples esboço, uma tese   profundamente enraizada na natureza de Nietzsche, que vê no perigo de ser herdeiro uma nobreza e uma prova de valor, amalgamando esse sentimento a um orgulho   familiar fatalista.
  • A originalidade característica de uma família revela-se plenamente apenas no homem   maduro, sendo o indivíduo mais filho   de seus quatro avós do que de seus pais, devendo a Nietzsche sua natureza original e extrema a uma mistura biológica de elementos antinômicos que ele exacerba até o lendário.
  • A lenda   das origens polonesas da família, embora genealogicamente suspeita, era cultivada por Nietzsche com satisfação fatalista como uma profecia   de sua missão e destino  , permitindo-lhe fundamentar seu "bom europeísmo" e sua crítica   à cultura alemã sobre uma suposta legitimidade biológica estrangeira, apesar das fortes raízes alemãs maternas ligadas ao círculo de Goethe em Weimar.
  • A verdadeira nobreza é definida estritamente como a nobreza de sangue e nascimento, resultante de uma longa cadeia ininterrupta de gerações que acumularam virtudes   e aptidões, rejeitando-se a ideia de aristocracia do espírito se esta não for sustentada por uma disciplina fisiológica ancestral, pois o espírito, por si só, não enobrece.
  • A interrupção na cadeia de bons antepassados ou um único ascendente ruim destrói a nobreza, sendo o valor de uma linhagem a capitalização da herança através das gerações, onde filhos de classes mercantis ou burocráticas traem suas origens na maneira como abordam a ciência   e a verdade  .

 O Herdeiro Sacerdotal e o Perigo da Modernidade  

  • Nietzsche reconhece-se como descendente de gerações de pastores cristãos e vê no cristianismo a melhor parcela de vida   ideal que conheceu, sugerindo que a piedade ancestral permeia até mesmo as palavras mais inauditas de Zaratustra, que é também um herdeiro e uma ponte para o passado.
  • Os grandes homens, profetas e artistas são herdeiros e desperdiçadores de um capital de força   acumulado lentamente por raças inteiras, sendo sua grandeza medida pela capacidade de gastar essa energia condensada; contudo, o perigo reside em ser o fim   da linha, o ponto de explosão que deixa esterilidade em seu rastro.
  • O perigo especificamente moderno é a mistura de duas longas cadeias de hereditariedades contraditórias, resultando em um homem biologicamente antinômico que carece de instinto seguro e cuja vontade é adoecida pelo ceticismo, o qual é a expressão intelectual de uma complexidade fisiológica resultante do cruzamento abrupto de castas ou raças.
  • Nietzsche percebe em si mesmo   o dualismo   e o problematismo gerados pelo encontro da herança sacerdotal com fatores de instabilidade, identificando-se com a figura   de Empedocles, o tipo-limite que oscila entre o médico e o mago, entre o deus   e o homem, refletindo a luta   entre a época do mito   e a época do esclarecimento científico.

 A Genealogia   como Método e Visão de Mundo  

  • A lei do atavismo e a explicação do indivíduo pelos seus ancestrais servem como princípio heurístico central na investigação psicológica de Nietzsche, aplicando-se tanto à análise dos sábios europeus, cujas origens profissionais familiares determinam seus métodos intelectuais, quanto à interpretação   dos grandes homens como ressurgimentos de culturas passadas.
  • Os judeus   são considerados a raça mais vigorosa na Europa instável devido à longuíssima duração de sua evolução, confirmando a tese de que a antiguidade de uma raça determina sua altura evolutiva e que o homem atavique, possuidor da memória mais longa, é necessariamente o mestre e o Cesar.
  • O filósofo ocupa o posto de Cesar na hierarquia humana por ser o homem da memória mais vasta, o resumo da crônica da humanidade, exigindo que gerações inteiras tenham preparado seu nascimento e que virtudes específicas tenham sido incorporadas ao longo do tempo   para permitir sua visão de grande justiça e responsabilidade.
  • A genealogia intelectual transcende o sangue para se tornar uma filiação mística de inteligências, onde Nietzsche se alinha a Heraclito, Empedocles, Spinoza e Goethe, vendo a filosofia   e a arte como um retorno do idêntico e uma rememoração platônica de intuições perdidas na noite   dos tempos.

 Simbolismo   Místico, Coincidências e Estilização da Vida

  • Nietzsche demonstra uma necessidade   estranha e quase antiga de legitimar sua existência através de símbolos, presságios e coincidências de datas, interpretando eventos como o nascimento no dia do rei Frederico Guilherme IV ou a matrícula na universidade no centenário da matrícula de Goethe como sinais de um destino superior.
  • A tendência de antedatar experiências espirituais e intelectuais para a infância, como a visão de Deus aos doze anos ou a composição de músicas sombrias, revela um desejo inconsciente   de estilizar a própria vida como a de um fundador de religião   ou figura lendária, criando uma perspectiva artificial que projeta o eu futuro sobre o passado.
  • Coincidências dramáticas, como a morte   de Wagner ocorrendo na hora exata em que o Zaratustra era concluído, ou o terremoto de Ischia destruindo o cenário que inspirou as ilhas bem-aventuradas do poema, são vividas por Nietzsche não como acasos, mas como conexões místicas e manifestações de potências que governam seu destino.
  • A escolha de locais de residência é frequentemente guiada por evocações históricas e genealógicas, como a busca   por lugares ligados a Napoleão, Frederico II de Hohenstaufen ou a atmosfera romana, demonstrando como o culto aos ancestrais e a história   pessoal se entrelaçam na geografia física e espiritual do pensador.

 O Fatalismo Ativo e a Redenção da História

  • O fatalismo de Nietzsche não é uma resignação passiva, mas um amor fati ativo e curativo, onde a vontade de poder e a responsabilidade trans-secular transformam a aceitação do passado em uma afirmação criadora, redimindo o "foi" através do "assim eu quis".
  • O historiador autêntico deve ser um profeta voltado para trás, capaz de interpretar o passado a partir da força máxima do presente e de construir o futuro, rejeitando a historiografia que não seja uma criação   e uma transformação da alma   antiga em um corpo   novo.
  • Zaratustra encarna a nova nobreza que se opõe tanto à tirania quanto à oclocracia do espírito, representando o homem da síntese que profetiza através da história, o poeta-vidente que condensa o fragmentário e o enigma do passado em uma visão afirmativa do futuro.
  • A suprema humanidade futura concebida por Nietzsche reside na fusão da história e da profecia, onde o indivíduo, consciente de suas responsabilidades, suporta o peso de toda a tradição humana e opera a reconciliação dos contrários, unindo a memória atávica à vontade criadora do Super-homem.
  • Existe, contudo, o perigo latente de que a força retroativa da história se torne uma magia   da ambição pessoal, onde tiranos do espírito, como Wagner ou Napoleão, violentam o passado para interpretá-lo exclusivamente como uma ponte para si mesmos, um risco que Nietzsche percebe e combate em sua própria natureza de "tentador".

Ver online : Ernst Bertram


BERTRAM, Ernst. Nietzsche: essai de mythologie. Tr. Robert Pitrou. Paris: Éd. du Félin, 1990.