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Nietzsche

Ernst Bertram: Lenda

Ensaio de Mitologia

Introdução: Lenda   e a Natureza   da Historiografia
  • A premissa fundamental de que somos servos do porvir e não comandantes do passado estabelece que tudo   o que existiu é apenas símbolo, sendo impossível para qualquer método histórico, a despeito do realismo ingênuo do século XIX, reconstruir a realidade   tangível tal como ela verdadeiramente ocorreu.
  • A história  , compreendida em última análise como a ciência   e a revelação das almas, jamais significa a reconstrução de um   objeto passado ou uma aproximação máxima de uma realidade pretérita; ao contrário, a historiografia desrealiza essa realidade anterior, transpondo-a para uma outra ordem de existência   onde ela avalia em vez de restaurar, criando uma imagem   que, mesmo na mais escrupulosa impassibilidade científica, obedece a uma vontade   intrínseca de tornar-se forma   e ascender a uma matéria   mais cristalina regida por leis mais transparentes.
  • Ao considerarmos historicamente uma vida   passada, especialmente no caso das individualidades históricas intensivas, não a tornamos presente nem a resgatamos do esquecimento para a nossa época, mas sim a esvaziamos de seu presente e a situamos fora do tempo  , de modo que qualquer tentativa de esclarecimento ou penetração já constitui uma interpretação  , resultando não na vida em si, mas invariavelmente em sua lenda.
A Lenda como Forma Viva da Tradição  
  • A lenda, destituída de conotações românticas e entendida em seu sentido   laicizado, representa a forma mais viva, originária, antiga e profunda da tradição histórica, atuando como a única força   capaz de conectar os tempos remotos ao presente e de unir o santo ao povo, o herói ao camponês e o profeta à posteridade.
  • Somente sob a forma lendária é que a personalidade, mesmo aquela delimitada com precisão pela ciência histórica, prolonga-se além do tempo como uma força continuamente produtiva, vivendo como imagem, figura   e mito  , e não como reconhecimento de uma realidade factual extinta.
  • A formação da imagem lendária escapa à competência da filologia e da análise, obedecendo a uma lei interna e a um impulso próprio que não dependem de conceitos como o maravilhoso ou a anedota não controlada, tampouco de uma tradição individual meramente pitoresca; a lenda de uma vida humana, cuja memória   perdura pela potência de suas ações e palavras, pertence a uma esfera distinta da biografia   científica, sendo um organismo autônomo que a cada novo presente recomeça a agir e a viver.
  • Tal imagem lendária, longe de ser   um resíduo de pesquisa   exata ou uma síntese artística consciente  , comporta-se como um organismo independente e transformável, cujos contornos se expandem ou se contraem, tornando-se simultaneamente mais típica e mais única, parabólica e incomensurável, ascendendo no firmamento da memória humana até fixar-se como uma constelação que jamais se põe no horizonte   da lembrança.
A Persistência do Mito e a Limitação da Análise Racional
  • O processo psicológico de formação da lenda segue leis observáveis que não diferem em princípio entre o mito heroico antigo e a hagiografia medieval, demonstrando que a abundância de lendas não decorre de um estado primitivo de civilização, uma vez que mesmo em épocas de cultura analítica e introspectiva a lenda não é eliminada nem recalcada pelo conhecimento   filológico das circunstâncias reais.
  • A prolongação da vida e da ação   de uma individualidade para além de sua existência pessoal constitui, conforme a visão   de Jakob Burckhardt, uma operação mágica e um processo religioso subtraído a qualquer influência mecânica ou racional, onde o grande homem   nasce uma segunda vez de modo independente das fontes biográficas, as quais representam apenas uma variedade inferior da tradição autêntica.
  • A independência da lenda em relação à exatidão factual é corroborada pela reflexão de Goethe em 1825, ao afirmar que a falta de caráter dos eruditos priva a humanidade de uma grandeza superior em favor de uma verdade   indigente, sugerindo que, se os romanos tiveram a grandeza de inventar lendas, nós deveríamos ter a grandeza de acreditar nelas; tal pensamento alinha-se à concepção aristotélica de que a poesia   é mais filosófica que a história, pois a força que cria os mitos emana da própria figura histórica e molda seu corpo   póstumo sem intenção consciente.
  • Sobre a imagem primitiva do Grande Homem depositam-se estratificações geológicas de metamorfoses insensíveis e inelutáveis trazidas por cada geração  , sendo impossível prolongar artificialmente a ação de uma fase da lenda além de sua época específica, pois a verdadeira grandeza só cumpre sua missão interna no quadro de uma sucessão preestabelecida e aprofundada.
A Perspectiva Histórica e a Subjetividade   do Conhecimento
  • Nenhum indivíduo situado no presente é capaz de apreender a totalidade de um grande homem ou de experimentar pessoalmente toda a potência de sua irradiação, restando-lhe apenas uma visão histórica, intelectual e póstuma que jamais substitui a vivência direta nem permite calcular o futuro da lenda, visto que os contemporâneos, posicionados no sopé da montanha  , contemplam apenas perspectivas em trompe-l’oeil e permanecem na ignorância quanto à orientação da ação futura.
  • As gerações subsequentes, embora beneficiadas por uma perspectiva mais distanciada, tampouco registram a imagem definitivamente verdadeira do que foi, mas apenas aquilo que se acomoda à sua própria ótica, o que ensina uma humildade da visão onde reconhecemos que, apesar de todo o método e objetividade, só sabemos o que vemos e só vemos o que somos.
  • A consciência de que um homem considerável é inevitavelmente uma criação nossa, assim como somos criação dele, não conduz ao ceticismo histórico, mas impõe a probidade de transmitir o momento preciso da lenda que jamais se repetirá, pois cada fragmento do passado é, em seu momento, eternidade e indispensável para a totalidade da imagem que se forma.
  • A alegria de trabalhar ativamente na gênese de uma grande imagem, descrita poeticamente por Lenau com ritmos de Angelus Silesius, reflete a ideia de que a história sagrada só se torna viva no espírito, ecoando a antítese paulinina entre o Cristo   segundo a carne   e o Cristo em potência; isso confirma que a história é criação ativa de imagens e não mera reprodução, e que a lenda, etimologicamente, é algo que deve ser constantemente relido sob condições sempre diferentes.
A Mitologia de Nietzsche e a Dualidade   da Alma  
  • Todo o real tende a transformar-se em mito e a biografia dos mortos ilustra a máxima do pensamento japonês de que todos os mortos se tornam deuses, processo no qual figuras como Sócrates, Cristo, Homero, Shakespeare, César e Napoleão possuem ciclos míticos que as gerações individuais apenas podem fragmentariamente esboçar.
  • O mito de Nietzsche encontra-se ainda em sua fase inicial, tendo superado os estágios de divinização absoluta e de ódio fanático, apresentando agora uma imagem em transição onde os traços do visionário do Super-homem e do glorificador da Besta Loura começam a esmaecer, dando lugar a uma avaliação mais complexa que talvez ainda sofra de erros de perspectiva, comparáveis à superestimação geográfica do maciço de São Gotardo.
  • Independentemente das avaliações comparativas de altura intelectual, Nietzsche encarnou e explicou com pureza excepcional o destino   da alma de seu século, nascendo sob o signo da Balança e representando o perigoso "Talvez" que caracteriza os filósofos do futuro; sua natureza reflete a ambiguidade atribuída por ele mesmo a Wagner, aos românticos e aos filósofos alemães como Leibniz, Kant, Hegel e Schopenhauer.
  • Nietzsche tornou-se a encarnação histórica recente do aner dipsychos (homem de alma dupla) mencionado na Epístola de São Tiago e a ilustração da tese   de Lichtenberg de que as criaturas mais estranhas se encontram nos limites, apresentando uma unidade paradoxal que se realiza na própria dualidade e contradição, divergindo da unidade na multiplicidade postulada por Kant.
  • A evolução da imagem de Nietzsche orienta-se para o mito do cético crente e do blasfemador sedento de Deus  , obedecendo à lei do acúmulo progressivo da lenda, segundo a qual a humanidade capitaliza o tesouro das grandes ações em poucos nomes, transferindo para figuras como Platão, Alexandre, Dante ou Goethe a glória dos menores, num processo onde Nietzsche aparece como o herdeiro da rebelião luciferiana mesclada à nostalgia divina e da resignação prometaica.
  • Esta natureza dual, que o faz assassino de Deus e profeta de um Deus, tal como o Eros   de Platão e o Dioniso "duas vezes nascido", exige que sua figura seja examinada de múltiplos pontos de observação, como quem contorna uma montanha, aceitando que a imagem atual é apenas um momento de um mito em lenta mutação, o qual, como o próprio filósofo sugeriu em seus versos de 1881-1882, será colocado em luz   mais viva por aqueles que ascenderem em sua própria trajetória.

Ver online : Bertram


BERTRAM, Ernst. Nietzsche: essai de mythologie. Tr. Robert Pitrou. Paris: Éd. du Félin, 1990.