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Pessoa: O pensamento de Descartes

Excertos do livro   organizado por António Quadros, "A procura da verdade   oculta". A Filosofia   no Tempo  .

O verdadeiro método de exame metafísico foi-nos indicado por Descartes — o método da dúvida universal.

É até aqui o verdadeiro método metafísico que a mais recente filosofia determinou e de que, antes de estudarmos a metafísica  , devemos primeiro criticar o conhecimento   humano, a percepção   e os seus limites e possibilidades. Quando filosofamos, a nossa primeira ação   mental é, pois, a de expulsar o tirânico preconceito do hábito e, não menos, todo   o peso do conhecimento que pode parecer legitimamente adquirido, e pode parecer revestido de indubitável correção.

Enquanto assim duvidarmos, no entanto, uma coisa torna-se clara para nós, a de que nós, para duvidar e para pensar  , precisamos de ter existência  : Cogito, ergo sum — Penso, logo existo.

E lamentável que a linguagem   humana não possa fornecer uma melhor representação do seu pensamento racionalizante. Pareceria que «Aliquid cogitat ergo sum» — «algo pensa algo existe» seria melhor, mas, como disse, a (linguagem) humana não está à altura da humana razão.

Duas coisas se revelam neste raciocínio — a prova da existência do «ego  » e a primeira de todas as categorias — a do Ser  .

Este raciocínio, além de tudo o mais, tem essa outra coisa que será conveniente considerar. Quando Descartes raciocinou deste modo até ao «ego» e assim provou a sua própria existência, parece ter esquecido que o princípio da dúvida poderia ser ainda mais alargado — nomeadamente para a única ideia que não criticou e de que não duvidou — nomeadamente a ideia de existência ou de ser. E uma omissão natural, pois é humano errar. Assim é que nada   diz sobre o significado das palavras «Eu existo», as quais embora compreensíveis, são contudo filosoficamente obscuras.

Constitui uma obstinação não compreender que a filosofia é toda ela dúvida.

Podemos entender o que Descartes quis dizer, mas as suas palavras foram mal   escolhidas. Tentemos corrigi-las.

Vemo-nos e desejamo-nos com toda a nossa lógica e gramática. Porque se transformássemos a expressão de Descartes em «Aliquit cogitat, ergo sunt» (Algo... existo), não faremos nenhum sentido  . Se acrescentarmos o que é necessário, de modo a que a expressão se torne: «Aliquit, quod cogitat, ergo sum», de novo nos tornamos culpados de uma prematura introdução do «ego». Por muito que tentemos, a frase nunca cederá, antes de mais nada o «ego» não pode ser eliminado. E desta falta de resultado o mais alto resultado é obtido — nomeadamente a descoberta do sentido dado por Descartes à linguagem filosófica. Sem dúvida; e a conclusão é a de que a ideia do «Ego» é a primeira das primeiras na mente humana; o Ser a primeira categoria que encontramos.

Quando, no princípio desta exposição, tive de determinar o «ego» pelo argumento de Descartes: «Penso, logo existo», e quando digo «Eu existo», a palavra existo não tem um   significado explicável, para além daquele em si próprio intangível.

A existência não tem para nós um verdadeiro sentido, a não ser como uma intuição  . Como veremos, por mais profundamente que pensemos, ela é uma idéia inteiramente primária, é insusceptível de análise, de decomposição — noutras palavras, é uma condição do conhecimento. Mais — é uma primeira condição do conhecimento, assim como a individualidade, mesmo esquecida na infância, é em consequência a primeira de todas as categorias.

Se existir é ser consciente  , então o raciocínio de Descartes não é senão uma petitio principii, já que ser consciente é pensar, segundo a própria asserção de Descartes, e ele diz que pensar é existir.

Mas, como provarei, existir não é ser consciente; a existência não requer tempo nem espaço; o Ser é absoluto  .