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Rosea Cruz
Pessoa: Os herméticos
Textos estabelecidos, coordenados e apresentados por PEDRO TEIXEIRA DA MOTA
quarta-feira 10 de setembro de 2025
Fragmentos dos escritos do espólio de Fernando Pessoa Fernando Pessoa Pessoa, Fernando (1888-1935) , organizado por Pedro T. Mota, sobre o tema «ROSEA CRUZ».
53B-33 (m)
R.-C. ... ou Bacon — Shakespeare Shakespeare William Shakespeare (?-1616)
3 ordens da R. Cruz:
(1) a interior, oculta,...; que tem os segredos grandes; que ninguém conhece; que sabe os símbolos supremos.
(2) as esotéricas, que escrevem (R. Fludd); que sabem os símbolos secundários, mas ainda assim compreendendo-lhe de certo modo o alcance; e aqueles atos supremos-alquimia, prolongamento (não-eterno) da vida, etc. Sabem os símbolos metafísicos, conquanto não os conheçam supremamente.
(3) os exotéricos (Fr. Bacon) — (Os da mão-esquerda), que sabem apenas empregar os símbolos como que usuais, onde uma crença superficial põe a significação... (comunicam por copia, etc) — Não sabem as grandes descobertas, as vezes estão mesmo em antagonismo com elas (Bacon c. Fludd, ou ---), Jonson contra alquimia?)
Lá por isso do linga e do ioni disse eu; se o formos a ver así m, até aquela vela naquela palmatória...
— E porque não? disse o Desconhecido.
54 A 13 (m) O Desconhecido.
Exotéricas — Ciência.
Esotéricas — magia.
Herméticas —
Os esotéricos percebem a origem das coisas segundo a sua representabilidade do mistério para a alma humana. Os herméticos fora já de toda a compreensibilidade. Veem não já os símbolos mas as coisas. Para os gnósticos ainda a verdade aparece no seu símbolo vivo, não morto (como para os exotéricos). Para os herméticos é a verdade pura que é revelada.
53B-54 Rosa Cruz. (O Desconhecido)
Há três ordens de ciência: a da vontade, a da inteligencia, a da emoção. A intuição é a inteligencia da emoção. Mas a emoção pura — eis a ciência.
A ciência antiga era da casta dos sacerdotes. Os símbolos religiosos basilares — não confundir com acumulações sociais — são realmente conscientemente símbolos, produtos da consciente e ciente casta sacerdotal.
As magias: a deceptiva (prestidigitação).
O mistério (que é tudo) não é compreensível senão à emoção. A inteligencia não pode compreender o Mistério.
144D2 — 137 (m) O Desconhecido
Os herméticos, esotéricos e exotéricos
O exemplo da astrologia. As 3 maneiras. Duas crianças nascidas no mesmo lugar ao mesmo tempo. O como se faz a «diferença» é esotérico. O porquê é hermético.
Aparelho para cair prédios é esotérico. O como eles cairão, disporão das pedras no cair (nota do que acontece no fim) é hermético.
Exotérico — a ciência Esotérico — o ocultismo Hermético — o hermetismo
Todos os movimentos sociais, tudo no mundo está nas mãos dos herméticos. Todo o universo como o concebemos é criação dos Herméticos. Isto escapa à mais alta imaginação filosófica. Mas é como eu vos digo. Eu mesmo se vos digo isto, é que desconheço a vontade hermética de cuja existência apenas sei.
53B-54 (m) R. Cruz
«O fato», continuou o desconhecido, «é que tudo está mais complexamente ligado e interlógico do que se julga. Ou tudo deve estar relacionado e ... ou então não: ou a lei ou o acaso deve reger tudo. O acaso não é... E se é a lei, porque há-de ela parar num ou noutro ponto, porque não há-de ela dominar tudo? Se a lei rege o movimento dos astros, porque não há-de ela reger o encontro tido por (b) casual de duas pessoas. Se os astros são elementos no trabalhar da lei, porque não o serão os sentimentos humanos.
Porque não hão-de as estrelas reger as vidas humanas e os seres humanos, e a hereditariedade e o meio também, e na mesma lei, que, por ser lei, há-de ser uma, i.e., por ser uma, deve ser a mesma sob a aparência diversa dela.
(b) V. dito
138-15 (Dt) O Desconhecido.
«Os exotéricos têm relações com os anjos, pela magia profunda dominam os espíritos, sabem a significação intima e vital dos símbolos, conhecem a matemática profunda em que assentam as almas, "falaram" com os demiurgos, lidaram com os princípios magicamente causais que estão entre Deus e o Mundo, conheceram Cristo na sua Figura Eterna e na sua Vera Physiognomia não-simbólica.
«Sim, observei, lívido, eles foram aqueles que sem dúvida viram Í sis sem véu.»
«Não só a Ísis viram sem véu, mas com sentidos espiritualizados no seu corpo ao Maior Principio viram frente a frente. Colheram o auxilio de Asmodeus, de Beelzebuth, de outros.
Agora escutai, disse o Desconhecido, baixando a voz que tomou de repente uma intonação de sombra, distante e ao mesmo tempo pavorosamente nítida. Escutai:
Pausou um momento. Depois, não sei se lentamente, mas tenho a impressão que sim, disse-me estas palavras assombrosas:
«Mas nada disso nunca existiu. Os espíritos, os deuses, as Vidas Supremas de que os símbolos falam, os demiurgos, os demônios, os espíritos todos — nunca existiram. São criações dos HERMÉTICOS para uso ilusório dos Esotéricos. Assim como estes só por símbolos não sempre certos dão noticia da sua fé e dos seus poderes aos Exotéricos, aqueles o fazem a eles. Deus mesmo não existe; Deus é uma criação ilusória dos HERMÉTICOS. Existe realmente e verdadeiramente para os Esotéricos, mas verdadeiramente não existe. O mistério é mais profundo do que julgais e de que os Esotéricos julgam. O Mistério É MAIS UNO E INDIVISÍVEL DE QUE DEUS E O ANJOS.
Um grande horror físico descera sobre mim. Eu não sabia para onde pudesse olhar que um terror pessoal não saísse desse objeto.
Quando ergui os olhos não havia ninguém no quarto, além de mim. O grande espelho fitava-me ocamente. Com mão tremula acendi o candieiro. A alegria humilde da luz derramou-se de repente pela sala. Não estava lá ninguém. Eu tinha sonhado então? Não podia determinar se sim, se não. Olhei em volta, cheio de um pavor que morava, rígido, nas minhas mínimas, sentidas, veias.
Mas nada de estranho no quarto. Nada?
Numa estante um livro saía para fora, parecia ir cair. Eu tive uma certeza inexplicável de que aquilo era anormal e estranho, de que (se bem que não tivesse reparado para a estante antes) aquele livro não estivera assim há talvez momentos. Quis ir em direção a ele mexer-lhe, mas um pavor tolheu-me. Por fim pude avançar.
Cheguei ao pé da estante, diante do livro, tirei-o para fora. Olhei-lhe para a capa. Era a Bíblia.
Num gesto rápido, como que decididor da minha sorte peguei na Bíblia e abri-a.
Não sei porquê um versículo foi a única coisa que imediatamente vi, como se o resto da pagina estivesse inteiramente branca. Foi esta, rigorosamente, a sensação que tive.
Abri e li:
54-5 (dt)
Conhece, disse ele, que, porque tudo que está em baixo é como o que está em cima, assim no oculto há uma politica, como a nossa politica terrestre e material; que há uma diplomacia transcendente. O ocultismo, que por símbolos e sombras, temos, não é a expressão de uma verdade, mas de uma opinião transcendente. O caminho verdadeiro da Verdade só se vê quando conhecemos o principio fundamental, de que devemos servir-nos para nos desvestir da ilusão primaria.
— E qual é esse principio fundamental?
— É este: NO ABSOLUTO NÃO HA NEM BEM NEM MAL. O Bem e o Mal são termos criados para simbolizar coisas que, em si, nem bem nem mal contêm. O ocultismo é uma politica da Vontade absoluta, em que figura como mal, porque oposto aos seus interesses transcendentes, tudo quanto é a Inteligência; mas a Inteligência só é um mal para quem a tem por inimiga.
Nos mitos antigos há traços da primeva dissidência. Do Anjo Rebelde se diz que é Lúcifer, o Portador da Luz. Porque razão se identifica a Luz com o Mal? Porque o que lhe chama Mal é a Treva. Ele ilumina e dissipa a Treva Originaria, o Caos primevo. A Luz é o mal porque está constantemente a destruir o Mundo, cuja substancia é a Treva.
O Deus que criou o Mundo não é o Ser. Há mais mundos do que aqueles que Deus criou. Há mais Deuses que Deus. Há mais Realidades que a Realidade natural ou sobrenatural.
O mal é de duas especies. Há o mal que é inimigo da substancia do Mundo: este é a Inteligência, que é o ver-o-mundo-de-fora, o principio de fuga do mundo para o Além-Infinito. E há o mal que é inimigo do mundo, e não da sua substancia, e este é o mal puro e simples — o mal do criminoso, e por vezes também do santo, o mal do que quer destruir os outros para existir, ou destruir-se para que os outros existam.
Acima de todos os deuses e de todos os mundos, impessoal, nem bom nem mau, Inteligência Pura, despida de todos os atributos, está o DESTINO. Cada mundo, cada universo, tem o seu Deus criador, e o seu Bem e Mal, que são a tendencia para regressar a Deus, e a tendencia para se afastar dele.
A revolta dos anjos não nasceu de quererem desobedecer ao omnipotente. Contra o Omnipotente não poderia haver revolta. Nasceu da tendencia para a Verdade, para verem, acima do Deus que os criara, alma do mundo a que pertencem, o DESTINO. Por isso ao anjo primeiro rebelde se deu o nome de Lúcifer — o Portador da Luz.
Acima da ânsia de fusão com os produtos de Deus, está, com efeito, a ânsia mística de fusão com Deus, que é a base do ocultismo (quase) todo. Mas acima desta mesma ânsia está a ânsia de fugir a Deus e ao Mundo — a ânsia de fusão com o Destino.
A revolta dos anjos não é a mesma que a desobediência de Adão. Os anjos quiseram fugir de Deus para o Destino, da Pura Vontade para a Inteligência Pura, da Pura Personalidade para o Puro Impessoal. Adão quis fugir de Deus para os produtos de Deus. A tentação a que ele sucumbiu, diz a Escritura que foi pela mulher, e sob o impulso da Serpente.
O Mundo foi criado pela Emoção, que é a logica da Vontade (o Logos do Mundo); por isso se descreve a Segunda Pessoa da Trindade como ao mesmo tempo Emoção e Logos. Adão e Eva são a Vontade e a Emoção separadas; o pecado foi em querer ser como Deus, unindo-as. Deu a inversão de forças, porque no nosso mundo humano, a Emoção precede a Vontade. A Emoção foi tentada pela Consciência (a Serpente). A Emoção sem Vontade, como Deus a quis, é a Virgem. O filho da Virgem, isto é, o produto da Emoção sem Vontade, é por isso o Filho de Deus.
Em tudo isto, onde está a Inteligência? A INTELIGÊNCIA NÃO É DESTE MUNDO, É EXTRANHA À SUBSTANCIA DO MUNDO: DERIVA DO DESTINO, SUPERIOR AOS HOMENS E A DEUS.

Ver online : Fernando Pessoa
FERNANDO PESSOA. ROSEA CRUZ. Lisboa: Edições Manuel Lencastre 1989. Textos em grande parte inéditos, estabelecidos, coordenados e apresentados por PEDRO TEIXEIRA DA MOTA.