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Borges – Duração do Inferno

Jorge Luis Borges   — DISCUSSÃO
Excertos da tradução em português de Claudio Fornari

A DURAÇÃO DO INFERNO  

Especulação que vem se tomando cansativa com o passar dos anos, essa do Inferno. Descuidam-se dela os próprios pregadores, talvez desamparados da pobre, ainda que serviçal, alusão humana de que as fogueiras eclesiásticas do Santo Ofício eram neste mundo   um   tormento temporal; um tormento temporal, sem dúvida, mas não indigno, dentro das limitações terrenas, de ser   uma metáfora   do imortal e da dor   perfeita sem destruição que conhecerão para sempre os herdeiros da ira divina. Seja ou não satisfatória esta hipótese, é indiscutível que já se toma cansativa a propaganda desse estabelecimento (e que ninguém se assuste com isto, pois a expressão propaganda não é de genealogia comercial e sim católica; é uma reunião dos cardeais). No século II, o cartaginês Tertuliano podia imaginar o Inferno e prever sua operação com este discurso  : "Se lhes agradam as representações, esperem a maior de todas, o Juízo Final. Que admiração sentirei, que gargalhadas, que comemorações, que alegria quando veja tantos reis soberbos e deuses enganadores sofrendo nas mais ínfimas prisões das trevas  ; tantos magistrados que perseguiram em nome do Senhor, derretendo-se em fogueiras mais ferozes do que aquelas que foram açuladas contya os cristãos; tantos graves filósofos consumindo-se em rubras fogueiras com seus ouvintes iludidos; tantos poetas consagrados tremendo ante um tribunal que não é o de Mídas, mas sim de Cristo  ; tantos atores trágicos, agora mais eloquentes na manifestação de um tormento tão genuíno..." (De spetaculis, 30; citação e versão de Gibbon). O próprio Dante  , na sua grande tarefa de prever de modo episódico algumas decisões da Justiça Divina relacionadas com o norte da Itália, não tem igual entusiasmo. Depois, os infernos literários de Quevedo — mera oportunidade espirituosa de anacronismos — e de Torres Villaroel — simples oportunidade de metáforas — somente evidenciaram o crescente desgaste do dogma. A decadência do Inferno está presente neles como em Baudelaire  , este já tão incrédulo dos imperecíveis tormentos, que simula adorá-los. (Uma etimologia significativa origina o inócuo verbo francês gêner da poderosa palavra gehenna, das Escrituras.)

Passo a examinar o Inferno. O descuidado verbete pertinente do Dicionário enciclopédico hispano-americano, merece ser   lido, não por suas indigentes informações ou por sua apavorada teologia de sacristão, mas sim pela perplexidade que deixa entrever. Começa por observar que a noção de inferno não é privativa da Igreja católica, precaução cujo sentido   intrínseco é o seguinte: Não vão agora os maçons dizer que essas brutalidades foram introduzidas pela Igreja. E em seguida se dá conta de que o Inferno é dogma, e acrescenta um tanto apressadamente que é Glória imperecível do cristianismo atrair a si quantas verdades se achavam espalhadas entre as falsas religiões. Seja o Inferno um dado da religião   natural ou apenas da religião revelada, o certo é que para mim nenhum outro assunto da teologia tem igual fascinação e poder. Não me refiro à mitologia simplista de cortiço — esterco, espetos, fogo   e tenazes — que tem vegetado aos seus pés, e que todos

os escritores têm repetido, para a desonra de sua imaginação e da sua decência. [1] Falo da estrita noção — lugar de castigo eterno para os maus — que constitui o dogma, sem outra obrigação do que a de situá-lo in loco reali, em um lugar preciso, e a beatorum sede distincto, lugar bem   diferente daquele onde habitam os eleitos. Imaginar o contrário seria sinistro. No quinquagésimo capítulo de sua História  , Gibbon quer reduzir o esplendor   do Inferno e escreve que os dois   vulgaríssimos ingredientes que são o fogo e a escuridão bastam para criar uma sensação   de dor, a qual pode ser agravada infinitamente pela ideia de uma duração eterna. Esta advertência, difícil de satisfazer, prova talvez que a preparação do inferno é fácil, porém não suaviza o admirável espanto de sua invenção. O atributo de eternidade é o horroroso. O de continuidade — os fatos de que a perseguição divina carece de intervalos e de que no Inferno não existe o sono — é ainda pior, porém é de impossível imaginação. A eternidade da pena   é o que se contesta.

Há dois argumentos belos e importantes para invalidar essa eternidade. O mais antigo é o da imortalidade   condicional ou aniquilação. A imortalidade, argúi este compreensivo raciocínio, não é atributo da natureza   humana decaída; é um dom de Deus   em Cristo. Não pode, por conseguinte, ser mobilizada contra o mesmo indivíduo a quem é outorgada. Não é uma maldição, e sim uma dádiva. Quem a merecer, merece-a com o céu; quem prova ser indigno de recebê-la, morre para morrer — como dizia Bunyan — morre sem resto. O Inferno, segundo essa piedosa teoria, é o nome humano blásfemo do esquecimento de Deus. Um de seus propagadores foi Whately, autor   de um opúsculo de famosa lembrança intitulado Dúvidas históricas sobre Napoleão Bonaparte.

Especulação das mais curiosas é aquela apresentada pelo teólogo evangélico Rothe, em 1869. Sua argumentação — enobrecida também pela secreta misericórdia de negar o castigo infinito   aos condenados — observa que eternizar o castigo é eternizar o Mal  . Deus, afirma ele, não pode querer essa eternidade para o Seu universo  . Insiste ser um escândalo supor-se que o homem   pecador e o diabo   possam burlar para sempre as benévolas intenções de Deus. (A teologia sabe que a criação   do mundo é obra de amor  . O termo predestinação significa para ela predestinação à glória; a reprovação é simplesmente o oposto, uma não escolha traduzível em pena infernal, mas que não constitui um ato   especial da bondade divina.) Advoga, enfim, uma vida   decrescente e minguante para os réprobos, que antevê saqueando pelas margens da Criação, pelos vazios do espaço infinito, mantendo-se com sobras de vida. E conclui assim: Como os demônios estão afastados de Deus e são incondicionalmente seus inimigos, sua atividade se exerce contra o reino de Deus, e se organiza em um reino diabólico que deve, naturalmente, eleger um chefe. A cabeça desse governo demoníaco — o Diabo — deve ser imaginada como cambiante. Os indivíduos que assumem o trono desse reino sucumbem à condição fantasmagórica do seu ser, porém se renovam entre seus diabólicos descendentes (Dogmatik, I, 248).

Chego agora à parte mais inverossímil da minha tarefa: os argumentos elaborados pela humanidade a favor da eternidade do Inferno. Passo a resumi-los, em ordem crescente de significação.

O primeiro é de índole disciplinária. Postula que o temor ao castigo radica precisamente na sua eternidade, e que duvidar dela é invalidar a eficácia do dogma e fazer   o jogo   do Diabo. É argumento de natureza policial, e não acredito que mereça ser discutido. O segundo se escreve assim: A pena deve ser infinita porque a culpa também o é por atentar contra a Majestade de Deus, que é um Ser infinito. Observou-se que esta demonstração prova tanto, que se pode depreender que não prova nada  ; prova que não há culpa venial e que todas as culpas são imperdoáveis. E eu acrescentaria que é um caso perfeito de frivolidade escolástica, e que seu equívoco   reside na pluralidade de significados da expressão infinito que, aplicada ao Senhor, quer dizer incondicionado, assim como da pena que quer dizer incessante, e da culpa, que não é nada que eu consiga entender. Além do mais, arguir que uma falta é infinita por ser atentatória a Deus — que é um Ser infinito — é como arguir que a mesma falta é santa, porque Deus também o é, ou então como pensar   que as ofensas feitas a um tigre devam ser raiadas.

Levanta-se agora sobre mim o terceiro dos argumentos, o único. Poderia, talvez, ser enunciado assim: Há eternidade de céu e de inferno porque a dignidade do livre arbítrio assim o necessita; ou temos a faculdade de construir para sempre ou a individualidade é ilusória. A virtude desse raciocínio não é lógica, é muito mais: é inteiramente dramática. Impõe-nos um jogo terrível; concede-nos o direito atroz de perder-nos, de insistir no mal, de rechaçar as operações da graça, de ser alimento de um fogo que não se extingue, de fazer Deus fracassar em nosso destino  , do corpo   sem claridade no eterno e do detestabili cum cacodaemonibus consortium. Teu destino é coisa veraz, nos dizem; condenação eterna e salvação eterna estão no teu minuto; essa responsabilidade é tua honra  . £ um sentimento   parecido com o de Bunyam: Deus não brincou ao converter-me; o demônio não brincou ao tentar-me; nem eu brinquei ao mergulhar em um abismo sem fundo, quando as aflições do Inferno se apoderaram de mim e tampouco devo brincar agora ao contar. (Grace abouding to the chief of sinners, the preface.)

Creio que no nosso impenetrável destino, em que regem infâmias como a dor física, todas as coisas extravagantes são possíveis, até mesmo a perpetuidade de um Inferno, porém acredito também que é uma irreligiosidade crer nele.


Pós-data. Nesta página de simples informação posso, da mesma forma  , comunicar um sonho  . Sonhei que saía de outro sonho — prenhe de cataclismos e de tumultos — e que despertava em uma peça irreconhecível. Clareava; uma escassa luminosidade geral definia os pés da cama de ferro, a cadeira exata, a porta e a janela fechadas, a mesa vazia. Pensei com medo onde estou? e compreendi que não sabia. Pensei quem sou? e não pude reconhecer-me. O medo cresceu em mim. Pensei: Esta vigília desconsolada já é o Inferno; esta vigília sem destino será a minha eternidade. Despertei então, de verdade  . Tremendo.


Ver online : Jorge Luis Borges


[1O aficionado de infernos, todavia, fará bem em não desconhecer as seguintes infrações honrosas: o inferno sabiano, cujos quatro vestíbulos superpostos admitem filetes de água suja no piso, porém cujo recinto principal é espaçoso, empoeirado e sem ninguém; o inferno de Swendenborg, cuja escuridão não é percebida pelos condenados que rechaçaram o céu; o inferno de Bernard Shaw (Man and Superman, páginas 86-137) que inutilmente distrai sua eternidade com os artifícios do luxo, da arte, da erótica e do renome. (N. do A.)