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Philosophie de l’Alchimie

Françoise Bonardel (1993) – Recordação e Transmutação

6. A Terra dos Sábios

  • A dialética rilkeana entre a modernidade   faustiana, o medo e a constituição do verdadeiro coração  

    • Aderir plenamente à catástrofe que Rainer Maria Rilke   identifica como o recalcamento do ato   de amor   para a periferia da existência  , apropriando-se sem reservas da extraversão característica da modernidade faustiana, implicaria necessariamente ignorar o medo na sua acepção fundamental de onipresença do terrível em cada partícula da atmosfera.
    • O fechamento prematuro do indivíduo em uma interioridade abusivamente tomada por coração, seja pela perseguição desse medo ou pela inconsciência   da fenda íntima capaz de romper seres e coisas, resulta na privação de uma ocasião de transmutação, a qual exige que uma angústia estrutural — distinta da ansiedade neurótica descrita por Freud — agarre o nó central do ser   para testar sua capacidade de conversão.
    • Torna-se imperativo redefinir a topografia interior para não confundir a expansão exteriorizante com o simples recalcamento afetivo, mas sim reconhecer no coração rilkeano o eixo vazio e pleno de uma regulação esotérica, uma amêndoa que se fecha e perde sua amargura, revelando a virtualidade de um   espaço virgem onde uma religiosidade sem transcendência pode reencontrar seu sítio.
  • A alquimia   da Terra   e do Espaço sob a medida do olhar angélico

    • A distinção entre a Terra e o espaço íntimo do mundo   (Weltinnenraum) em Rilke não se resolve por uma simples dicotomia entre coagulação e dissolução, mas sim através de um trabalho lento, paciente e obscuro de aprofundamento que inverte o visível em terra invisível, tendendo a um incomensurável cuja potência é aferida pela capacidade humana de medir o próprio mensurável.
    • Quando a Terra e o espaço se transmutam intimamente em coração, a exatidão do olhar angélico intervém para ponderar e apaziguar a vastidão de um espaço que se tornou, por excesso de angústia, simultaneamente Aberto e coração, harmonizando a amplitude aterrorizada de um com a densidade purificada da outra.
    • O Anjo e o poeta, figurado no mito   de Orfeu, atuam como despertadores e guardiões de dois   estados parentes de uma mesma matéria   trabalhada alquimicamente, onde a dispersão extrema da consciência   moderna exige como antídoto um combate   pela concentração através de um retorno ao profundo, comparável a uma fenda que atravessa o céu e se inclina para o tréfundo das retortas.
  • O descenso à matéria ancestral e a recusa da introspecção psicológica

    • O movimento de repatriação das energias dispersas em direção a uma terra que não se oferece como pátria acolhedora distingue-se radicalmente da interiorização introspectiva ou da exploração do inconsciente, caracterizando-se antes por gestos cegos de reparação que buscam trazer tudo   a um centro e escavar em profundidade, à semelhança de uma toupeira ou de raízes minerais.
    • A aceitação do peso e da gravidade terrestre, descrita como uma austera maternidade do ser, constitui o único sustento dos criadores, que devem devolver todo sofrimento   à terra sem esperar descobrir tesouros imediatos, mas sim preparar uma matéria capaz de acolher o invisível outrora recalcado pela exterioridade.
    • A proximidade alcançada nesse estado de empedramento do ser não é confusão nem mera coagulação, mas uma pobreza essencial que aprende a lição de aquiescência aos dons e perdas da Terra, manifestando um espírito afim ao dos alquimistas, secretos jardineiros da lentidão, que preservam o esplendor   virtual das coisas através de um anonimato impessoal.
  • A inversão radical da arte   e a constituição da Terra filosofal

    • O poeta, ao descer o sangue   de outras eras para os abismos saturados de ancestralidade, permite que o despojamento consentido confira a esse profundo a virtude de uma terra onde se levanta o rosto das coisas libertas de seu mutismo, operando a inversão mais apaixonada do mundo pela qual a arte retorna do infinito   para transmutar a terra na grande colmeia de ouro do invisível.
    • A queda   renunciante na origem e o aprofundamento em direção ao ancestral prefiguram e possibilitam o retorno ao Aberto, desde que tenha havido um acordo   justo entre esse profundo e o fora, e uma primeira extração do emaranhado da vida  , permitindo ao ser respirar em uníssono com o espaço intermediário disponível para a alma  .
    • A distinção entre a eclosão natural da flor   de amendoeira e o amadurecimento ensinado pela figueira ilustra a necessidade   de inverter o impulso espontâneo para a floração em favor de uma epifania do terrestre que se expande numa intimidade secreta, onde o coração atua como o pressuposto perecível de um vinho   imperecível para a humanidade.
  • A função ontológica da linguagem   e a crítica   da imagem   em Yves Bonnefoy

    • Palavras carregadas de sentido   como anjo, espaço, terra e coração não funcionam em Rilke como símbolos  , mas como fragmentos de uma terra verbal submetida à alquimia poética para cumprir o circuito total da metamorfose, reconduzindo cada termo a uma Terra segunda cuja superabundância constitui um coração comparável à Pedra Filosofal.
    • Yves Bonnefoy propõe que a visão   poética deve aliar amplitude e exatidão, transformando palavras ordinárias em vasos de segundo grau e rejeitando o uso de imagens e símbolos como frutos apressados do imaginário, a fim   de torná-los focos de um sentido reanimado pelo ato poético em um verdadeiro lugar simbólico.
    • A poética da presença em Bonnefoy, simbolizada pela salamandra alquímica em oposição aos turbilhões angélicos, busca   libertar o desejo das nostalgias e idealizações através de um prisma filosofal que detecta a marca indelével da finitude e inicia uma poética do desvio, preservando o Oriente e a evidência gloriosa do real exemplar.
  • A transmutação da finitude e a circularidade da Grande Obra

    • A alquimia inerente à poesia   de Bonnefoy conjuga a esperança com o simples possível, orientando uma marcha lúcida entre a desilusão e a plenitude guiada pela visão de um Ouro outonal e filosofal, onde a finitude aceita não é limite, mas virtualidade obscura de um possível preservado, reconduzindo o desejo de absoluto   ao limiar iniciático da coisa qualquer verdadeiramente amada.
    • A recondução à Terra revela a distinção entre a Grande Obra como figura mítica de totalidade e a dimensão filosofal que reside na redescoberta de um espaço-tempo  -matéria capaz de salvaguardar o distanciamento entre Céu e Terra, essencial para o operar em um Ocidente devastado onde a dissolução e a coagulação carecem de ponderação.
    • A verdadeira Obra constitui-se na aliança imputrescível de plenitude e vacuidade, onde o terceiro círculo descrito por Jean d’Espagnet atua como órgão de refresco e consolo, e a superabundância de uma Terra glorificada conduz à representação final da Grande Obra como o próprio apagamento: um silêncio   cozido como ouro em mãos carbonizadas.

Ver online : Françoise Bonardel


BONARDEL, Françoise. Philosophie de l’alchimie: grand œuvre et modernité. Paris: PUF, 1993.