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JGR: metafísica do grande sertão
Francis Utéza (JGR) – A Obra em branco
III. A Grande Obra
A Via Seca e a Ascensão ao Arquétipo do Centro
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O reduto dos jagunços opera como um cadinho da via seca alquímica onde o composto humano é submetido à depuração pelo fogo , processo exemplificado pela morte de Marcelino Pampa, cuja natureza áurea exige que seu corpo , compreendido como escória aurífera destacada do amálgama, seja piedosamente resgatado da lama para não ser maculado por elementos terrestres, uma vez que o fogo que vige nas duas bandas da morte ilumina a iniciação de sua alma .
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O processo de sublimação impulsionado pelos fluidos aéreos impõe a necessidade de elevação vertical ao protagonista e seus companheiros, elegendo o sobrado como o único local apropriado para o comando, o que configura o edifício na narrativa como um Arquétipo do Centro e uma Torre de onde o chefe deve reger o todo , conforme demonstrado pela análise da dinâmica espacial que situa o herói acima da gravidade terrestre.
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A travessia rumo à Torre manifesta a difícil transição e a dinâmica da separação entre o estado de jagunço e o de chefe, marcada por uma progressão aos pulos e rastejante que vitima Jiribibe, o qual, incapaz de transpor da horizontalidade à verticalidade, acaba petrificado no solo como uma aderência terrestre que não resistiu ao fogo celeste, enquanto Riobaldo, num simbolismo de renascimento, atravessa a cozinha-laboratório e a escada em caracol para ressurgir da goela-matriz do sertão como um novo Jonas libertado do útero terrestre.
A Sintomatologia Patológica e a Degradação Psicomotora
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Ao adentrar o sobrado, o protagonista inicia uma provação que compromete sua integridade física e psíquica, manifestando sintomas que ele próprio descreve com precisão clínica ao solicitar que se lhe escute o coração e o pulso, revelando um quadro de dificuldades respiratórias, febre, sede intensa e cefaleias perfurantes que simbolizam, sob a ótica hermética, a solidificação que ataca a sede do espírito e exige um aporte de fluidos inexistente naquele ambiente seco.
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A disfunção nervosa progride dos membros superiores para os inferiores, com tremores nas mãos e hesitação nas pernas que o herói tenta contrariar através da força moral de sua vontade, recusando a hipótese do medo e nutrindo ilusões de grandeza semelhantes à apoteose do Tamanduá-tão, embora a realidade somática se imponha através de espasmos faciais incontroláveis e dificuldades na fala que denotam o atingimento severo do cérebro e da capacidade de narração.
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O diagnóstico médico, passível de ser estabelecido pela análise dos sintomas descritos pelo autor -médico Guimarães Rosa , aponta para um quadro de febre tifoide com complicações neuromeníngicas, corroborado pela etimologia da palavra tifo que remete ao termo grego Tufos, significando estupor, estado que o próprio narrador admite conhecer e que explica as náuseas, a astenia, os delírios e a confusão mental que a crença popular, e o próprio protagonista em seu momento de crise, equivocadamente associam à possessão diabólica ou à ação de forças maléficas.
O Eixo Metafísico e a Fixação no Sertão
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No clímax do combate , a paralisia do chefe no alto da Torre o transforma em um espectador crucificado, incapaz de agir ou falar, mas com a percepção visual exacerbada, momento em que a imagem do redemoinho se cristaliza tanto no duelo externo entre Hermógenes e Diadorim quanto na desordem interna, unificadas pelo provérbio o diabo na rua no meio do redemunho, que atua como o eixo metafísico onde se fundem a estória , a narração e a escrita, paralisando o fluxo psicomental do herói.
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A interpretação demoníaca do transe é desconstruída pelo testemunho das personagens Guirigó e Borromeu, que confirmam a ausência de sinais clássicos de possessão como o espumar pela boca, e pela própria intuição do protagonista que, num ato falho revelador ou retificação subconsciente, substitui o nome de Satanás pela palavra Sertão, sendo este lapso confirmado oracularmente pelo cego Borromeu, indicando que é a realidade caótica e mineral do Sertão primitivo que opera a fixação e a condensação alquímica do sujeito.
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O desenlace do episódio no sobrado representa a consumação da Obra em Branco, onde a extrema secura e o calor do combate operam a separação final dos componentes do ser, ilustrada pela chegada de Hermógenes como o homem que se desata e pela concomitante desagregação de Riobaldo, cuja alma perde o corpo e cujo espírito ígneo se liberta num precipício branco, concluindo o processo de depuração onde o herói é reduzido à sua essência solitária e atemporal.
Ver online : Guimarães Rosa
UTÉZA, Francis. JGR: metafísica do grande sertão. São Paulo, SP, Brasil: Edusp, 1994.