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JGR: metafísica do grande sertão
Francis Utéza (JGR) – A Obra em rubro
III. A Grande Obra
A Dinâmica do Mandala e a Geometria do Combate
- Dois círculos concêntricos, compostos primeiramente pelos defensores do Paredão e cercados pelos homens de Hermógenes que por sua vez são envolvidos pelos reforços do Cererê-Velho, formam-se em volta do sobrado no cimo do qual flutua um Riobaldo desintegrado, dissolvendo-se seguidamente para dar lugar a uma nova configuração quando os dois grupos antagonistas se desafiam na faca em torno de seus respectivos condutores. Esta coreografia encena as metamorfoses de uma sequência de mandalas ou representações do Uno centralizados na Torre, significando uma dinâmica universal cujo desenvolvimento escapa ao controle do chefe, o qual assiste passivamente a um duelo decidido sem ele e ordenado em função de três elementos, sendo eles um conjunto aéreo e ígneo polarizado por Diadorim, um conjunto terrestre e aquático polarizado por Hermógenes e um centro fixo e equidistante habitado pela Mulher , o Menino, o Velho e o próprio narrador.
A Polaridade Alquímica e a Fusão dos Contrários
- A violência do antagonismo que anima o turbilhão plástico fundamenta-se na oposição da Grande Tríade hermética Enxofre-Mercúrio -Sal e ilustra o Tao chinês na fusão yin-yang, onde Diadorim carrega valores fixos e luminosos que o ocidente classifica como Bem e Positivo, enquanto Hermógenes converge os valores negativos do Mal , do informe e do obscuro. O narrador relata esta situação do ponto de vista do centro, descrevendo uma progressão onde a conjunção dos oponentes produz inicialmente um turbilhão caótico indetalhável que evolui para um amálgama inominável, um magma coloidal ou terceiro corpo indissociável saído dos dois pólos, selando o destino terrestre de ambos numa unidade onde o sangue espirra e a distinção visual se perde na vertigem do movimento.
O Processo de Coagulação e Volatilização
- No desfecho fatal, a ação de Diadorim ao cravar a faca e sangrar Hermógenes representa a fixação do ser informe e volátil numa imobilidade mineral definitiva, privando o antagonista de sua virtude úmida e transformando-o num corpo solidificado, uma massa de matéria sem espírito descrita pela personagem João Concliz como um homem demoníaco que inicia sua putrefação. Simultaneamente, Diadorim sofre um processo de volatilização alquímica onde, ao contato com o antagonista da terra e da água , sua parte masculina ígnea se evapora e seu corpo celeste se condensa, resultando no desaparecimento visual imediato para o observador e na ausência de marcas de violência física no cadáver, o qual preserva a beleza do Arquétipo e uma energia residual ígnea capaz de provocar a sensação de queimadura ao toque de Riobaldo.
A Hierogamia da Violência e a Paralisia do Espírito
- O duelo configura-se como uma hierogamia de contrários realizada na violência, idêntica ao combate das duas naturezas que abre a primeira porta da Obra Alquímica, onde a oposição tirânica dos temperamentos cessa apenas pela aniquilação mútua que engendra um terceiro corpo herdeiro das qualidades mistas dos genitores falecidos. A observação deste processo por Riobaldo coincide com a coagulação de seu próprio fluxo psíquico e a paralisia física, onde a incapacidade de rezar — ato cuja etimologia latina recitare remete à raiz grega Kine ou movimento — sinaliza a esclerose da vontade fulminada numa ideia fixa, revelando que a imagem do Diabo na rua no meio do redemunho atua como o ponto fixo e necessário no coração da espiral do dinamismo universal, imobilizando o sujeito na iluminação do Conhecimento .
A Linguagem em Abismo e o Orvalho Salvador
- A narrativa do combate reproduz a vertigem do evento através de uma linguagem que funciona em abismo, onde o fluxo verbal se altera para mimetizar as peripécias e a própria palavra solução se converte em soluço, denotando o sofrimento e a estagnação do espírito que anseia por um socorro interno. A liberação deste estado de coagulação ocorre através do orvalho, o agente alquímico por excelência que transforma a fixidez em fluidez libertadora, desencadeado não por uma ação externa mas pela imaginação voluntária e mística de Nossa Senhora assentada, uma imagem estática e apolínea que contrabalança o dinamismo dionisíaco e tenebroso do turbilhão diabólico, restaurando o equilíbrio axial entre a esfera luminosa do Ser e a espiral do Devir.
O Simbolismo do Uroboro e a Tábua de Esmeralda
- A recuperação da consciência e a reintegração do espírito ao corpo iniciam-se por um ato simbólico de autofagia quando Riobaldo morde a própria mão, inscrevendo em si mesmo o símbolo do Uroboro, a serpente hermética que devora a si própria e representa o Conhecimento e a ciclicidade da matéria. Este gesto confirma o princípio da Tábua de Esmeralda segundo o qual tudo o que não provém do céu emerge dos buracos escuros da terra, reafirmando a máxima de que o que está no alto é como o que está embaixo e vice-versa, permitindo ao protagonista ascender dos abismos metafísicos em que se encontrava mesmo estando fisicamente no cimo da Torre.
O Sobrenascimento e a Via do Iniciado
- A sobrevivência de Riobaldo à batalha não constitui um mero retorno à vida anterior mas o surgimento de um homem definitivo que se instala nos despojos do homem provisório, após passar pela prova do fogo e pelo batismo de sangue proporcionado pelo sacrifício alquímico de Diadorim e Hermógenes. Este novo ser, comparável a um recém-nascido ou larva humana que necessita recuperar as energias vitais despendidas na transmutação, encontra na Fazenda Barbaranha o local propício para o acolhimento, onde a integração do arquétipo feminino através de Otacília fornece a seiva necessária para a alma , e o encontro posterior com Zé Bebelo e Quelemém — figuras associadas a Hermes e à dialética alquímica — completa a iniciação , permitindo ao ex-jagunço tornar-se o mestre capaz de apontar as auroras do conhecimento.
Ver online : Guimarães Rosa
UTÉZA, Francis. JGR: metafísica do grande sertão. São Paulo, SP, Brasil: Edusp, 1994.