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JGR: metafísica do grande sertão

Francis Utéza (JGR) – A Obra em negro

III. A Grande Obra

O Ciclo Iniciático e a Dualidade   do Ser   no Limiar da Metamorfose
  • O percurso iniciático, em sua totalidade  , compreende necessariamente uma etapa preliminar de retração que culmina em uma morte   simbólica, liberando a parte divina aprisionada na materialidade   corpórea, processo mediante o qual, através das operações de fixação e subsequente separação, o Ser   profundo reúne-se à matriz universal para regenerar-se antes de reanimar o antigo despojo.
  • No derradeiro ciclo da aventura, o protagonista manifesta-se sob a condição de um   duplo, conjugando as naturezas de chefe e de homem   comum, sendo imperativo examinar as metamorfoses finais sob a luz   desta dualidade fundamental que rege a existência do indivíduo nas fronteiras do sertão.
  • A travessia   geográfica para o Cererê-Velho, situado a oeste, configura-se não apenas como um deslocamento espacial, mas como a instalação em uma fronteira temporal marcada pela instabilidade atmosférica, onde a agitação do chefe e sua incapacidade de repouso refletem a perturbação dos elementos e a iminência de uma transformação ontológica.
A Percepção   Cósmica e a Decantação Alquímica da Noite  
  • Na transição entre a noite e o dia, momento cuja etimologia latina maturicare remete ao conceito de maturação, a interpretação   dos sinais sonoros noturnos sob o prisma da angústia revela o temor da desestabilização moral  , onde a dualidade entre Deus   e o Diabo   surge como hipótese contingente que reflete apenas o sentido   atribuído pelo homem aos eventos.
  • A contemplação   da abóbada celeste e dos astros suspensos inverte a tendência à angústia, pois a visão   das constelações, como as Três  -Marias e o Cruzeiro, desperta uma ressonância   que transcende a vigília, harmonizando o coração   com a música   das esferas, conforme sugerem as raízes etimológicas que ligam o ato   de acordar a chorda e o desejo a sidus.
  • A mensagem extraída da noite profunda opera como uma decantação alquímica que revela a Unidade subjacente à dualidade aparente, demonstrando que a oposição entre Deus e o Diabo é uma questão de perspectiva que se dilui na imagem   das águas tranquilas e na vastidão do sertão.
A Preponderância do Yin e a Desintegração da Personalidade Solar
  • O processo de desintegração da personalidade de liderança de Urutu-Branco evidencia-se pela incoerência de suas ações e pela substituição da intuição   espontânea pelo cálculo   racional e pela dúvida, sinalizando que, após o solstício de verão, as energias masculinas do yang retraem-se para dar lugar à predominância dos apelos femininos do yin.
  • A perda da capacidade intuitiva como instrumento de conhecimento   transforma a percepção do futuro em fonte   de ansiedade, levando o chefe a abandonar seus homens para perseguir um fantasma feminino, ato que confirma a virada cíclica e o distanciamento da comunhão com seus subordinados, que passam a ser percebidos como estranhos.
  • O mal  -estar físico e moral, caracterizado por cólicas e ânsias, deve ser compreendido em sua raiz etimológica latina angustia, denotando opressão e estreitamento, confirmando a interconexão entre o desequilíbrio psíquico e as desordens somáticas, algo que Rosa, em sua condição de médico, reconhecia como indissociável.
O Trespasse Simbólico   e o Retorno à Imanência
  • A crise é momentaneamente superada por um elã irracional que projeta uma imagem luminosa e impermeável de Diadorim, mas o retorno a este ideal é marcado por uma postura defensiva e pela intrusão de memórias maternas e sonhos bucólicos que rejeitam o ofício de jagunço e a impostura da chefia em favor de uma estabilidade sedentária.
  • A predominância do yin na natureza   consolida-se com a vitória do vento Norte sobre o Sul, acompanhando a renúncia de Urutu-Branco que, ao deitar-se em um catre comum sob um teto, consuma sua morte simbólica como chefe e o regresso à condição de indivíduo, processo selado pelo verbo trespassar, que evoca a separação hermética dos componentes do ser.
  • A dissolução da figura centralizadora do chefe devolve o indivíduo Riobaldo à periferia e à igualdade com seus pares, restando apenas um homem sem a aura mítica, iludido quanto à sua estratégia defensiva e desconectado da Dike, a justiça imanente, confiando cegamente em uma estabilidade sensorial enganosa.
A Dialética do Castelo Interior e a Via Seca
  • A tentativa de aliviar a tensão corporal através da água   do rio é brutalmente interrompida pelo ataque inimigo, impedindo a purificação pela via úmida e petrificando o herói, momento em que emerge do fundo do ser uma voz antagonista que sugere a deserção, interpretada contingentemente como demoníaca.
  • A experiência do desdobramento interior remete à imagem do castelo da alma  , presente na mística de Mestre Eckhart e Santa Teresa de Ávila, demonstrando que tais manifestações provam a existência de um ponto fixo na consciência   onde energias de sinal contrário permanecem disponíveis para restabelecer o equilíbrio dialético do espírito.
  • A reintegração do protagonista à massa coletiva na trincheira, simbolizada pelo número cinco e pela fusão tátil com os companheiros, marca o fim   da fase de morte e o início da regeneração através do fogo  , que atua como elemento sicativo e sublimatório, transformando a matéria sólida e depurando o ser.
  • A substituição do nome Urutu-Branco pela alcunha Tatarana, a lagarta de fogo ou salamandra heráldica, sinaliza a transição alquímica para a via seca, onde o adepto, incapaz de se purificar pela água, submete-se ao fogo secreto para que uma nova personalidade emerja do cadinho da batalha.

Ver online : Guimarães Rosa


UTÉZA, Francis. JGR: metafísica do grande sertão. São Paulo, SP, Brasil: Edusp, 1994.