Página inicial > Obras e crítica literárias > Patocka – linguagem e fala
Jan Patocka. L’écrivain et son "objet"
Patocka – linguagem e fala
quinta-feira 3 de julho de 2025
A linguagem, traço distintivo do homem (nenhum animal possui linguagem no sentido de um meio de entendimento com um teor de significação), cristaliza-se originalmente a partir da fala, da atividade de falar, sendo esta inseparável de uma situação de fala. A situação de fala é o que determina o sentido do que é dito, o que localiza a significação no tempo e no espaço, relacionando-a a tais ou tais pessoas cuja presença é dada a entender pelo contexto. Na origem, a fala é parte integrante de uma situação; só é compreensível a partir dessa situação. Tanto o diálogo quanto o discurso dirigido por um só a vários comportam necessariamente, além de expressões objetivas que não situam, outras cujo sentido precisa ser completado pela situação à qual remetem. Só a situação diz quem é "eu", "tu", aquele, o que é hoje, daqui a pouco, isto, perto e longe, etc. Essas significações ocasionais (para retomar o termo de Husserl) são em si mesmas representações essencialmente incompletas que, diferentemente das representações gerais, não significam caracteres abstratos do concreto, mas caracteres formais da situação dentro da qual designamos e falamos. Pelas expressões ocasionais, a fala é inserida no mundo de tal modo que só o mundo a torna plenamente significativa e compreensível. A fala faz assim parte integrante de nossa vida; é coisa situada no mundo como sendo uma parte dele.
A componente objetiva da linguagem só se presta a um uso prático porque está, através da componente situacional, relacionada a nosso entorno concreto, às condições singulares nas quais vivemos. Em situação de falantes, apropriamo-nos do sistema linguístico de nossa sociedade e de nossa época, sistema elaborado de maneira histórica. A compreensão das significações singulares de uma língua dada também ocorre em situação de fala. Essa dependência da linguagem em relação ao caráter situacional do falar não é puramente formal. Muito pelo contrário, a própria maneira como nos apropriamos em situação das significações objetivas, a maneira como articulamos semanticamente a realidade é historicamente relativa. Em tcheco, não articulo o corpo humano da mesma forma que em alemão; em alemão, não posso empregar Hand como sinônimo de Arm; em tcheco, não há equivalente para a distinção entre Schenkel e Bein. Pela prática de seu falar, o francês adquire uma distinção entre rivière e fleuve à qual nada corresponde nem em tcheco nem em alemão. Rilke queixa-se de que o alemão não possui uma expressão equivalente a paume e dlan. As ópticas segundo as quais um objeto dado é articulado, as perspectivas semânticas nas quais um mesmo objeto é conhecido, são diferentes em diferentes línguas. Não se pode designar os objetos nem fora da situação nem "diretamente"; eles são visados sempre em situação e numa perspectiva, e a perspectiva significa a escolha muito contingente de um ponto de vista. Para retornar a nosso exemplo, pode-se "ver" os membros numa perspectiva ou disjuntiva ou unitária. O tcheco "vê" os membros superiores numa perspectiva unitária, por isso a distinção paze-ruka é acessória. O alemão e o francês os "veem" numa perspectiva disjuntiva, na qual Arm-Hand ou bras-main não são intercambiáveis. Uma concepção qualquer, um princípio de articulação de uma espécie ou de outra deve sempre ser admitido numa língua, pois acontece que as próprias coisas não são dadas, mas visadas apenas através de nossas significações. Ora, as perspectivas significativas são função da atitude que adotamos e, portanto, de um princípio de escolha subjetivo.
Dito isso, importa notar que não vemos de imediato o caráter situacional e contingente da linguagem que a reflexão faz aparecer como bastante manifesto e fundamental. Não nos apercebemos disso porque é através da linguagem que estamos junto das coisas — a linguagem não é um fim em si mesma, remete sempre para fora de si mesma, a algo objetivo. Na vida cotidiana, a linguagem nunca é nosso tema. Uma tendência para a objetividade está assim fundada na linguagem desde o início. O cumprimento primordial da linguagem, o que faz com que aquele que experimenta algo (por exemplo, o doente que sente dores), assim como aquele que não faz a mesma experiência de maneira atual, mas a quem ela é comunicada (o médico que o interroga), pensem, ao falar, na mesma coisa, mostra bem a tendência objetivante da linguagem. A linguagem nos faz penetrar muito além da esfera estreita daquilo que podemos experimentar por nós mesmos no original, sem por isso estarmos apenas no domínio da imaginação subjetiva.
Aparece então que a situação originária de fala implica também, em sua estrutura geral, uma possibilidade de transcendência. A estrutura originária de toda situação de fala é um "eu" que fala, um "tu", ou uma pluralidade de "tu", ao qual ou aos quais me dirijo, e um terceiro de quem se fala mas que não tem lugar entre os parceiros da conversa; esses três elementos são indispensáveis e inseparáveis. A situação normal é uma situação dupla, onde cada "eu" é ao mesmo tempo um "tu" e cada "tu" um outro "eu", os dois estando em posição de troca recíproca e de reflexo simétrico: o que do ponto de vista de um é atividade, para o outro é receptividade, o que aos olhos de um é aqui, é para o outro ali, ao passo que esses "eu" se referem ambos ao terceiro como a um elemento considerado e concebido em comum, que é assim percebido de diversas maneiras, sendo, nessa diversidade, idêntico. No aviso, na informação, no relato, esse elemento comum se torna o tema, e a particularidade da situação própria não é mais levada em vista, assim como perdemos de vista a modificação de nosso campo perceptivo ao nos deslocarmos por uma paisagem que percebemos como imóvel. Esse elemento comum compreende então também um "eu" enquanto "ele", forma na qual traduzimos automaticamente todo discurso proferido (por nós mesmos ou por outros) na primeira pessoa, donde a impressão de uma informação puramente objetiva que nos esforçamos por alcançar em situação de fala.
Segue-se uma possibilidade de nos expressarmos de tal modo que a relação com a situação não é mais levada em vista e a fala se torna compreensível internamente a partir de si mesma. A narração seguida, que pode ser compreendida por quem quer que a ouça, tem tal caráter. Aqui não precisamos, para compreender, estar presentes, como na conversa viva. A própria fala se encarrega das remissões às conexões que quer assinalar a nossa atenção, é ela que nos guia. As conexões originariamente dependentes da situação de fala tornam-se autônomas; as remissões às coisas passam a ser remissões a palavras, a frases, a estruturas verbais. Cada frase composta incluindo um relativo ou um demonstrativo pode tornar-se elo numa cadeia puramente verbal dessa espécie.
A arquitetura verbal pode assim estender-se a ponto de adquirir um caráter universal. Torna-se possível apreender objetivamente sequências de eventos, complexos de relações, experiências e distritos de coisas em sua totalidade. O sistema linguístico, originalmente uma simples componente do mundo, torna-se um quadro dentro do qual se pode doravante apreender e representar grandes partes do mundo, estruturas inteiras. Pouco a pouco, chega-se a apreender pela narração não apenas as singularidades, mas o sentido global das coisas, a relação de finalidade funcional que elas exprimem ou parecem exprimir para nós, a maneira como as coisas estão ligadas entre si, como se pressupõem mutuamente aos nossos olhos, as vicissitudes e os conflitos que decorrem desses complexos de relações. Tal narração pode estar tematicamente desligada de toda realidade dada, pode ser inteira ou parcialmente imaginária e, no entanto, exprimir um sentido global real ou tido como real. É o caso do mito, a primeira grande expressão verbal objetiva em que a situação originária da criatura falante é invertida. O falar como fenômeno singular no mundo torna-se discurso, apreendendo e, nesse sentido, contendo o mundo.


Ver online : PATOCKA, Jan. L’écrivain, son “ objet”. Paris: Presses Pocket, 1992