Litteratura

Página inicial > Obras Literárias > Sampaio Bruno — A Ideia de Deus

Sampaio Bruno — A Ideia de Deus

domingo 23 de fevereiro de 2025

Excertos do estudo de Maria Helena Varela, "O Heterologo em língua portuguesa"

Desde que Deus se entenda como temporariamente não onipotente, todas as dificuldades desaparecem qual por encanto, as antinomias de Kant logo se resolvem. Sampaio Bruno Sampaio Bruno , A Ideia de Deus

Se o século XIX proclamou abruptamente a morte de Deus através de Nietzsche, o niilismo e a crise da metafísica que esta metáfora representa na cultura ocidental refletem ainda a dificuldade do homem assumir à escala humana o mal, o tempo e a morte, já que sempre aspirou a essa onipotência e eternidade, agora negadas ao próprio divino. À morte de Deus não tardará a suceder-se esse homicídio antropológico de que fala Foucault, ou o último homem que ameaçamos ser e perecer, atolados nesse vazio axiológico que é o ocaso dos humanismos. Em Portugal, embora Nietzsche seja citado por Sampaio Bruno Sampaio Bruno em A Ideia de Deus, não chega a discutir-se a ausência ou inexistência de Deus. Neste esboço de teodiceia heterodoxa que inicia a segunda navegação gnósica, o autor parece perder-se nas coordenadas ônticas da cisão, do tempo e do mal, numa espécie de teurgismo ou teosofismo, próximo das correntes gnósticas, em que o Deus decaído perde a onipotência no mistério da cisão primordial, permitindo e padecendo Ele próprio a existência do mal, num tempo degradado, espaço chamado.

No contexto dissolvente do século XIX ocidental, em que, implícita ou explicitamente, do racional ao imaginário, a metafísica permanece, A Ideia de Deus surge como uma espécie de súmula ontoteológica do heterologos português, na sua vertente débil e heterodoxa. Dedicada a Amorim Viana, matemático e pensador solar, aparentemente ortodoxo, mais conhecido em Portugal pela sua obra A análise do racionalismo e defesa da fé, Sampaio Bruno Sampaio Bruno pretende essencialmente em A Ideia de Deus refutar a perspectiva otimizante e leibniziana daquele autor, enquanto nega a essência real do mal. Através desta refutação e consequente afirmação do primado ontofenomenológico do mal, procura encontrar uma prova singular e essencial da existência de Deus, ou seja uma justificação para a procura do absoluto, quanto mais negado pelos ateísmos niilistas, tanto mais implícito na insatisfação e angústia humanas. Heterodoxo, este esboço de teodiceia aproxima-se mais das teurgias e teosofias no seu misticismo filosofante, como afirmam Joel Serrão e José Marinho, do que das teologias reveladas e confessionais; metafísico, mantem-se à margem da metafísica clássica, numa espécie de reformulação gnóstica da metafísica.

Numa perspectiva heterodoxa, entre o místico e o esotérico, Bruno defende que Deus não é objeto da ciência teológica, mas de uma revelação à alma humana, numa espécie de êxtase contemplativo dos gnósticos, permitindo-lhe uma ascese progressiva até à unidade divina donde tudo proveio, ou seja, à plena espiritualização. Assim, partindo da existência do mal, José Pereira Sampaio constrói a sua teodiceia heterodoxa, à margem do criacionismo, urdindo uma teia complexa e quase herética em que o esoterismo judaico da Kaballah, a teosofia de Martinez Pasqualis, o misticismo de Jacob Boehme, e o panteísmo de Espinosa são influências a considerar, embora a dos pensadores e poetas românticos, no seu irracionalismo hermético de inspiração gnóstica, constitua talvez a mais implícita, embora menos evidente.

Segundo Bruno, o Deus homogêneo, o espírito puro, onipotente e onisciente, num segundo ekstase temporal, correspondente à queda, ou cisão misteriosa, perdeu a onipotência, embora tenha mantido a onisciência. Daí a existência real do mal que passará a afetar o universo e todas as criaturas, incluindo o próprio Espírito decaído, estendendo-se do cosmos ao plano teológico. Afetando as criaturas e o criador, a cisão propicia a existência do mal, num mundo de erro e exílio, que o Deus decaído se limita a contemplar sem poder intervir, num tempo degradado, diminuído, espaço chamado. Assim se harmoniza a suprema perfeição do absoluto, com a natureza imperfeita da sua obra, justificando-se as antinomias kantianas numa dialética transcendental, enigmática e esotérica, sem qualquer suporte sensível ou material no plano gnosiológico:

Desde que Deus se entenda como não onipotente, todas as dificuldades desaparecem qual por encanto; e as antinomias de Kant logo logo se resolvem. Nem Deus é indiferente à nossa dor nem a sua maldade possível nos alucina. Ele não goza duma plena felicidade egoísta; também ele sofre, da diminuição do espírito puro e do mal da criatura, espírito alterado, ascendendo na sua convergência de regressão. [1]

A cisão permite, à maneira pré-socrática, explicar a passagem do uno ao múltiplo, do homogêneo ao heterogêneo, do tempo puro ao tempo degradado, espaço chamado. Transforma o Deus sive natura de Espinosa, o uno e homogêneo, no múltiplo e heterogêneo, já que a queda inaugural é geradora de profundas alterações ontológicas: um ser puro, mas diminuido e um ser separado, ou universo; um tempo imóvel ou eternidade e um tempo alterado, espaço chamado. Assim, dirá:

No princípio era a Perfeição, o espírito homogêneo e puro. No segundo momento, mercê do efeito dum mistério, temos o espírito diminuído e a seu par a diferença que se tornou heterogênea, isto é o mundo. No terceiro momento, reintegrar-se-á o espírito puro, pela absorção final de todo o heterogêneo. Assim, três são os instantes supremos do crescimento. Um: é o espírito homogêneo e puro, que foi e há-de voltar a ser. Eis o ponto de partida e eis o ponto de chegada. Outro: é o espírito puro mas diminuído atualmente, pelo destaque separativo do Universo. Enfim, o outro ainda: é esse Universo, que aspira a regressar ao homogêneo inicial.

Nós não podemos compreender como foi esse mistério da diferenciação de parte do espírito puro. Porém, que ele dado se houvesse é necessário: para que, um tanto inteligentemente o enigma universal nos seja, ainda que em seu limiar, acessível (Op. cit., p. 343-344).

Situando o mistério no início de toda a ciência humana e divina, aceitando a queda misteriosa no seio da própria perfeição, Bruno parece deslocar as origens solares da filosofia, para as suas profundidades crepusculares ocultas. No princípio era a cisão misteriosa, ou o mistério como princípio seminal da filosofia. A partir do mistério da cisão, o mal e o erro tornam-se, então, noções fundamentais, reais e razoáveis na sua irracionalidade, já que a queda que afeta o Espírito puro, afeta também a Verdade e o Bem, podendo considerar-se Sampaio Bruno Sampaio Bruno , como diz José Marinho, "o nosso primeiro filósofo da negação e da negatividade" [2].


[1Sampaio Bruno. A Ideia de Deus. Porto, Lello & Irmão, 1987. p. 348.

[2Marinho, José. Verdade, condição e destino no pensamento português contemporâneo. Porto, Lello & Irmão, 1976. p. 88.