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The Divine Within

Huxley: Religião como sistema simbólico

Selected Writings on Enlightment

Temos agora de prosseguir para considerar o problema da religião   como o outro   tipo de sistema simbólico  , não como o sistema de mitos, mas como o sistema de conceitos, de credos, de dogmas, de crenças. Trata-se de um   tipo de simbolismo profundamente distinto, e é aquele que, no Ocidente, foi muito mais importante. Os dois   tipos de religião — a religião da experiência   imediata, do conhecimento   direto do Divino  , e esse segundo tipo de religião simbólica — coexistiram, evidentemente, no Ocidente. Os místicos sempre constituíram uma minoria no seio das religiões oficiais manipuladoras de símbolos, e essa foi uma simbiose, mas uma simbiose bastante incômoda. Os membros da religião oficial tendiam a considerar os místicos como pessoas difíceis, causadoras de problemas. Eles chegaram até a fazer   trocadilhos com o nome; chamaram o misticismo   de “misty schism”, no sentido   de que não se trata de uma doutrina clara. É uma doutrina nebulosa, é uma doutrina antinomiana, é uma doutrina que não se conforma facilmente à autoridade; e, por conseguinte, eles a detestavam. E, por seu lado, evidentemente, os místicos falaram — não exatamente com desprezo  , porque não sentem desprezo, mas com tristeza   e compaixão — daqueles que se dedicam à religião simbólica, porque sentem que a busca   e a manipulação de símbolos são, pela própria natureza   das coisas, incapazes de alcançar aquilo que eles consideram o fim   mais elevado: a união   com Deus  , a identificação com o Divino. William Blake  , que era essencialmente um místico e que tendia a expressar-se em termos bastante veementes contra aqueles com quem discordava, descreve nesses termos a relação entre os dois tipos de religião. Ele tem este pequeno dístico em que diz: “Vem cá, meu rapaz! Diz-me o que vês ali.” E o rapaz responde: “Um tolo, enredado numa armadilha religiosa.”

Dentro da tradição   do Cristianismo ocidental, os místicos foram assegurados de uma posição tolerada pela perpetração, em estágio precoce do desenvolvimento cristão, daquilo que se denomina “uma fraude piedosa”. Por volta do século VI, apareceu uma série de volumes cristãos neoplatônicos sob o nome de Dionísio, o Areopagita, que fora o primeiro discípulo de São Paulo em Atenas. E esses volumes foram tomados como possuindo quase categoria apostólica. Na realidade  , os livros foram escritos ou no fim do século V ou no início do século VI, na Síria, e o autor   desconhecido   apenas assinou o nome de Dionísio, o Areopagita, em seus livros para que recebessem melhor acolhida entre seus pares. Era um neoplatônico que adotara o Cristianismo e que combinara as doutrinas da filosofia   neoplatônica e a prática do êxtase   com a doutrina cristã.

A fraude piedosa foi extremamente bem  -sucedida. Naturalmente, os livros de Dionísio foram traduzidos para o latim no século IX pelo primeiro filósofo, Scotus Erígena; eles ingressaram na tradição da Igreja ocidental e atuaram como uma espécie de baluarte e garantia para a minoria mística dentro da Igreja daí por diante. Não foi senão em tempos bastante recentes que a fraude piedosa foi reconhecida pelo que era. Mas, enquanto isso, é interessante notar que essa curiosa peça de falsificação desempenhou um papel muito importante, muito benéfico, na tradição cristã ocidental.

Agora, qual tem sido, também como fato histórico, a atitude dos defensores da religião como experiência imediata em relação à religião expressa em termos de símbolos? De modo extremo, Meister Eckhart exprime essa atitude. Ele diz: “Por que tu oras a Deus? Tudo   quanto tu dizes sobre Deus é falso.” Aqui é necessário fazer uma breve digressão sobre o uso da palavra verdade   na literatura religiosa. A palavra verdade é utilizada em pelo menos três   sentidos comuns. É empregada como sinônimo de Realidade; diz-se: “Deus é Verdade”, o que significa que Deus é o fato primordial. É usada no sentido de experiência imediata, quando, no Quarto Evangelho, se afirma que Deus deve ser   adorado em Espírito e em verdade, significando uma apreensão imediata da Realidade divina; e, finalmente, é usada no sentido comum do termo como correspondência entre proposições simbólicas e os fatos a que se referem. Eckhart, evidentemente, era teólogo além de místico, e não teria negado que a verdade, no terceiro sentido, fosse em certo grau possível na teologia; teria dito que algumas proposições teológicas eram certamente mais verdadeiras do que outras. Mas teria negado que houvesse qualquer possibilidade   de o fim último do homem  , a união com Deus, ser   alcançado por meio da manipulação desses símbolos. E essa insistência na ineficácia da religião simbólica para esse propósito último de união com Deus foi igualmente acentuada por todas as religiões orientais. Encontramo-la na literatura do Hinduísmo, na literatura do Budismo   Mahayana, do Zen, do Taoísmo e assim por diante; e eu gostaria de ler   uma ou duas das afirmações feitas pelos místicos orientais. Eis uma do Sutralamkara: “A verdade, na verdade, jamais foi pregada pelo Buda, visto que é necessário realizá-la dentro de si mesmo  .” E ainda: “Aquilo que é conhecido como o ensinamento do Buda não é o ensinamento do Buda.” De novo, tem de ser uma experiência interior. Houve até mestres Zen que prescreveram que qualquer pessoa que usasse a palavra “Buda” deveria ter a boca lavada com sabão, porque estava tão distante da meta da experiência imediata proposta por esse ramo do Budismo. E há ainda outra frase paradoxal: “Qual é o ensinamento último do Budismo? Tu não o compreenderás até que o possuas.” Por sua vez, Yoka Daishi diz: não sejas tão ignorante e pueril a ponto de confundir o dedo que aponta com a lua para a qual apontas. O hábito de imaginar que o dedo indicador é a lua condena todos os esforços para realizar a unidade com a Realidade a um fracasso total.

Essa tem sido a atitude regular dos místicos em todos os tempos, e sobretudo no Oriente. A filosofia oriental foi sempre aquilo que posso chamar de uma espécie de “operacionalismo transcendental”. Ela começa com alguém fazendo algo a respeito do Eu e, a partir da experiência obtida, prossegue para especular e teorizar acerca do significado dessa experiência; ao passo que, com demasiada frequência — sobretudo no pensamento ocidental moderno — obtém-se uma filosofia que é pura especulação, baseada em conhecimento teórico e que termina apenas em confusão teórica.

Contudo, houve muitas exceções a essa regra no Ocidente, sobretudo entre os místicos, que insistiram com a mesma força que seus homólogos orientais na necessidade   da experiência direta e na ineficácia dos símbolos e dos processos discursivos ordinários da mente. São João da Cruz afirma categoricamente: “Tudo quanto a imaginação pode imaginar e a razão conceber e entender nesta vida   não é, e não pode ser, um meio próximo de união com Deus.” E a mesma ideia é expressa pelo grande místico anglicano do século XVIII, William Law, que diz: “Encontrar ou conhecer Deus na realidade por quaisquer provas exteriores, ou por qualquer coisa que não seja o próprio Deus tornado manifesto e autoevidente em ti, jamais será o teu caso, nem aqui nem no porvir. Pois nem Deus, nem o céu, nem o inferno  , nem o diabo  , nem a carne   podem ser de outro modo cognoscíveis em ti ou por ti senão por sua própria existência e manifestação em ti. E todo conhecimento pretenso de quaisquer dessas coisas, além e sem essa sensibilidade autoevidente de seu nascimento em ti, é apenas aquele tipo de conhecimento que o homem cego tem da luz   que nunca entrou nele.” Isto, como digo, é o equivalente ocidental dessa repetição constante que encontramos em toda a literatura oriental.


Ver online : Aldous Huxley


HUXLEY, Aldous. The Divine Within: Selected Writings on Enlightenment. New York: HarperCollins Publishers, 2013.