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Gadamer: um retrato filosófico

Hermenêutica e Desconstrução

Mantendo o diálogo aberto


##### O Encontro Histórico e as Raízes Filosóficas Comuns

* O primeiro encontro entre Gadamer   e Derrida  , ocorrido em Paris em abril de 1981, embora inicialmente caracterizado por participantes e testemunhas como um   diálogo de surdos, revelou-se um evento de proporções epocais cujos desdobramentos intelectuais foram documentados na obra *Dialogue and Deconstruction*, editada por Philippe Forget; a despeito da percepção   inicial de incomunicabilidade, a questão legítima da diferença entre a hermenêutica   e a desconstrução permaneceu aberta, especialmente no contexto   norte-americano, onde a proximidade geográfica das correntes suscitou dúvidas sobre a distinção real por trás dos rótulos, ao passo que na Europa a proveniência comum de ambas as tradições é evidente, dado que ambas seguem os caminhos abertos por Heidegger, engajam-se com Hegel e retornam incessantemente à filosofia   grega, compartilhando temas centrais como a significância da arte   e da literatura.
* A relevância da interrogação desenvolvida na década de 1980 sobre o quão hermenêutica é a desconstrução e o quão desconstrutiva é a hermenêutica permanece inalterada, pois, não obstante as origens e temas compartilhados, estas correntes representam alternativas filosóficas distintas que exigem a elucidação de suas diferenças; no que tange aos protagonistas, o debate deixou traços profundos no pensamento de Gadamer, que aceitou o desafio de Derrida e refinou suas posições em ensaios subsequentes como *Destruktion und Dekonstruktion* e *Hermeneutik auf der Spur*, reconhecendo no filósofo francês uma das figuras mais importantes encontradas desde a publicação de *Verdade   e Método*, equiparando o impacto de sua leitura  , iniciada com o ensaio *Ousia e Gramme*, àquele provocado pelas obras tardias de Wittgenstein e pela poesia   de Paul Celan.

##### A Interrupção, a Compreensão   e a Vontade   de Poder  

* A postura de Derrida em relação à hermenêutica, inicialmente marcada por um engajamento esporádico focado na ênfase das diferenças, transformou-se significativamente após a morte   de Gadamer, momento em que, na conferência *Béliers*, o filósofo francês reinterpretou a estranha interrupção do encontro de Paris não como um mal  -entendido original, mas como uma *epoche* bem  -sucedida que suspendeu o julgamento e deixou um rastro provocativo para o futuro; ao renovar o tópico da interrupção, Derrida deslocou o foco da oposição entre oralidade e escrita para a questão da compreensão, revelando como a hermenêutica parte da unidade enquanto a desconstrução procede da diferença.
* A conferência de abertura de Gadamer em Paris, intitulada *Text und Interpretation*, buscou distinguir sua filosofia da desconstrução através da concepção de texto, advogando pela necessidade   de restituir a voz ao texto para destacar sua unidade de sentido   e reconduzi-lo ao diálogo original, culminando na invocação da boa vontade de tentar compreender o outro  ; tal formulação, percebida por Derrida como uma recaída na linguagem   da metafísica  , provocou uma resposta questionadora que associou a boa vontade hermenêutica à vontade de poder de Nietzsche   e ao imperativo ético de Kant, sugerindo que a vontade incondicionada de compreender poderia equivaler a uma nova versão da subjetividade   metafísica e, consequentemente, a uma dominação do Ser  .
* A crítica   derridiana aprofundou-se ao recorrer à psicanálise e ao conceito de ruptura, argumentando que o discurso   psicanalítico, ao explodir o contexto interpretativo amplo sugerido por Gadamer, exige uma interpretação produtiva baseada na ruptura, levantando a hipótese decisiva de que a condição da compreensão não seria a prontidão ilimitada para o diálogo, mas sim a interrupção do relatório e a suspensão de toda mediação; assim, a desconstrução lança sobre o diálogo hermenêutico a suspeita de que a interrupção, a desunião e a preservação da alteridade inapropriável do outro, bem como a impossibilidade da compreensão, constituem uma visão   alternativa preferível à continuidade dialógica.

##### A Defesa Fenomenológica e a Natureza   da Linguagem

* A resposta de Gadamer às objeções de Derrida, articulada no texto *Und dennoch: Macht des Guten Willens*, desvincula o esforço de compreensão da metafísica ou da boa vontade kantiana, ancorando-o, em vez disso, na tradição   do Sócrates platônico do *Gorgias*, para quem é preferível ser   refutado a refutar; trata-se, portanto, de uma posição fenomenológica que descreve as práticas cotidianas de fala   e compreensão, onde quem fala deseja ser compreendido, inclusive seres imorais ou autores como Derrida e Nietzsche, sem que isso elimine a realidade   do não entendimento ou do mal-entendido, concordando-se que não existe compreensão ininterrupta e que o diálogo psicanalítico representa uma manifestação extrema dessa quebra.
* A distância fundamental entre Gadamer e Derrida não reside na necessidade da interrupção, mas no fato de que, para a hermenêutica, a interrupção não é originária, pois o prelúdio da linguagem tem precedência e a diferença inscreve a unidade, aproximando-se da crítica da ideologia; diferentemente da desconstrução, que pode fortalecer ou aprofundar a colisão presente na obra de arte ou no texto poético, a hermenêutica atua de modo reverso, utilizando a interrupção para abrir e não para encerrar o diálogo, entregando-se a uma conversação infinita que reconhece que a ruptura nunca cicatriza totalmente, o que leva Gadamer a afirmar que insistir na diferença coloca-se no início   de uma conversa e não em seu fim.

##### O Legado de Celan e a Ética da Sobrevivência

* A distinção última entre as correntes reside no modo como a compreensão deriva ou da unidade do diálogo ininterrupto ou da diferença da interrupção, apresentando dois   caminhos após a tentativa de Heidegger de desmantelar a linguagem da metafísica: o caminho   da hermenêutica, que vai da dialética ao diálogo, e o caminho da desconstrução, que na *ecriture* causa   a laceração da metafísica; contudo, a reflexão final de Derrida sobre a morte e a interrupção definitiva retoma a promessa e a obrigação expressas nos versos de Paul Celan — *O mundo   se foi, preciso carregar-te* — entrelaçando os temas da morte, do diálogo e do poema, onde o sobrevivente permanece responsável por carregar o outro e seu mundo em um espaço fora do mundo.
* A aproximação sugerida por Derrida entre pensar   (*penser*) e pesar (*peser*), análoga à relação heideggeriana entre pensar e agradecer, implica que carregar o outro não significa mais compreendê-lo ou incluí-lo em si mesmo   (*comporter*), mas portar-se em direção (*se porter vers*) à infinita inapropriabilidade do outro e ao encontro com sua transcendência absoluta no interior do eu; a obrigação da desconstrução consiste, assim, em carregar a hermenêutica, preservando o resto de ilegibilidade que a hermenêutica tornou possível, de modo que Celan surge não apenas como ponto de convergência, mas como um *tertium datur* e ponto de nova orientação onde unidade e diferença oferecem o segredo   misterioso de sua referência elusiva.
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Ver online : Hans-Georg Gadamer


DI CESARE, Donatella; KEANE, Niall (orgs.). Gadamer: a philosophical portrait. Bloomington, Ind: Indiana University Press, 2013.