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Gadamer: um retrato filosófico
Hermenêutica e crítica da ideologia
Mantendo o diálogo aberto
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A gênese do debate entre a hermenêutica filosófica e a crítica da ideologia remonta à publicação, em 1967, de um extenso artigo de pesquisa intitulado Zur Logik der Sozialwissenschaften na Philosophische Rundschau, no qual Jürgen Habermas assumiu pela primeira vez uma posição formal em relação à filosofia de Gadamer . Embora a controvérsia resultante tenha sido breve e fortemente marcada pelo espírito da época do final da década de 1960, ela acarretou consequências significativas para ambas as correntes de pensamento, tendo Gadamer respondido com o ensaio Rhetorik, Hermeneutik und Ideologiekritik, seguido pela entrada de outros interlocutores na discussão, tais como Albrecht Wellmer, Karl-Otto Apel e Rudiger Bubner. A disputa teórica desenvolveu-se posteriormente com a obra de Habermas de 1970, Der Universalitätsanspruch der Hermeneutik, e a respectiva réplica de Gadamer um ano depois, consolidando um intercâmbio intelectual que, não obstante suas divergências, revelou uma solidariedade básica subjacente, visto que Habermas, oriundo da Escola de Frankfurt mas auxiliado academicamente por Gadamer em Heidelberg, buscava desenvolver uma crítica emancipatória da ideologia fundamentada na psicanálise freudiana e no pensamento marxista, contrapondo-se ao positivismo objetivista predominante na sociologia por meio de uma fundamentação teórico-linguística para as ciências sociais.
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A teoria da ação social proposta por Habermas afasta-se do modelo de centros de força atomísticos e causalmente interativos para se alinhar a esquemas linguísticos que orientam a interação, encontrando suporte no último Wittgenstein e na superação do mundo da vida fenomenológico em direção ao reconhecimento de formas de vida linguisticamente constituídas e articuladas em uma multiplicidade de jogos de linguagem . Na medida em que a ação social converge com a prática desses jogos, ela se revela como ação comunicativa, contudo, Habermas identifica a necessidade de dissolver as estruturas monádicas dos jogos de linguagem wittgensteinianos, nas quais os atores permaneceriam aprisionados, enfatizando as conexões ou a tradução entre tais jogos. Para superar os resquícios de positivismo na concepção de Wittgenstein e romper os limites gramaticais sem abandonar a linguagem cotidiana — evitando assim o caminho de Noam Chomsky —, Habermas recorre ao ponto de partida hermenêutico e, seguindo Humboldt, apropria-se do ensinamento de Gadamer de que a linguagem possui a capacidade de transcender a si mesma, revelando o potencial autorreflexivo da razão que escapa à coerção linguística ao mesmo tempo em que se articula nela, demonstrando que a universalidade da razão reside na possibilidade de que tudo o que é dito pode ser dito de outra forma .
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A controvérsia teórica desdobra-se em três áreas principais, sendo a primeira centrada no conceito de tradição, o qual Gadamer submetera à reflexão crítica sem, na visão de seus opositores, encontrar o equilíbrio adequado entre autoridade e razão, o que estaria associado a uma reabilitação dos preconceitos e a um suposto descrédito do Iluminismo; todavia, tal leitura pode ser considerada inexata, pois o objetivo gadameriano, expresso em Verdade e Método, não era obscurecer a razão, mas demonstrar que esta não é soberana, estando situada na tradição e operando historicamente, ponto que o próprio Habermas reconhece ao tentar utilizar Gadamer contra si mesmo para defender o direito à reflexão. A segunda área de debate envolve a acusação de idealismo linguístico feita por Habermas, segundo a qual a hermenêutica falharia em perceber tanto os limites externos da linguagem — o inefável — quanto os internos, especificamente a teia de dominação e poder social que a linguagem tece ao redor dos falantes, tornando-a um meio ideológico que reflete interesses; é precisamente através dessa investigação hermenêutica das relações conflitantes entre falante e linguagem que a hermenêutica se radicaliza e se transforma em crítica da ideologia.
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Na tentativa de desmascarar as relações de poder operantes na linguagem e sublinhar o papel constrangedor do consenso, Habermas mobiliza a crítica da ideologia e a psicanálise, questionando a dicotomia entre verdade e método e propondo uma compreensão metódica que, operando pelas costas da linguagem, submete a falsa consciência individual ou social à reflexão crítica em nome de relações comunicativas não distorcidas. Contrapondo-se a essa transposição do modelo psicanalítico para a crítica social, Gadamer adverte sobre o perigo de aplicar o esquema do diálogo terapêutico — caracterizado pela submissão voluntária do paciente a uma relação assimétrica com um analista que não é analisado até o fim — a todas as esferas da vida social, o que equivaleria a tratar cada falante como um paciente a ser emancipado por uma meta-hermenêutica que o elevaria a uma forma de consciência racional e transparente. A divergência fundamental reside no fato de que, para Habermas, o diálogo psicanalítico é um caso extremo que questiona a universalidade da hermenêutica, enquanto para Gadamer trata-se apenas de um caso individual influenciado por um acordo preliminar dentro do jogo da linguagem do qual nenhum falante pode escapar.
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A distinção entre acordo e consenso revela-se crucial, pois estar inserido na trama da linguagem não significa estar aprisionado ou aprovar necessariamente as condições vigentes; se a linguagem fosse vista como uma prisão autônoma, supervalorizar-se-ia a capacidade reflexiva do falante de obter uma perspectiva externa emancipatória nos moldes do Iluminismo, ignorando que a reflexão baseada na linguagem, embora possa revelar novas possibilidades, nunca alcança uma transparência de sentido completa e idealista. A hermenêutica filosófica, situando-se na fronteira entre os aspectos retóricos e hermenêuticos da linguística, eleva à consciência a posição do falante e abre caminho para uma reflexão especulativa que, segundo Apel, deve visar um ideal regulativo de diálogo infinito , denominado por Habermas como a antecipação da boa vida. Esse debate gerou repercussões mútuas, levando Gadamer a enfatizar posteriormente o potencial crítico da hermenêutica, onde o acordo que autoriza a continuidade da tradição é o mesmo que legitima sua mudança , permitindo que até a revolução seja compreendida como uma forma de confronto com a tradição ou uma solidariedade revolucionária.
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O impacto do debate no pensamento de Habermas manifesta-se no abandono, a partir de 1970, da psicanálise como paradigma de uma teoria crítica da sociedade e no desenvolvimento subsequente, em sua Theorie des kommunikativen Handelns, de uma ética do discurso que evidencia sua dívida para com o diálogo hermenêutico. O conceito de solidariedade permanece como um elo entre Gadamer e Habermas, fundamentando a tese de Richard J. Bernstein de que a hermenêutica filosófica contém uma crítica política confirmada pelo papel da phronesis ou sabedoria prática, denotando influência da crítica da ideologia. Em sua laudatio de 1979, intitulada Hans-Georg Gadamer. Die Urbanisierung der Heideggerschen Provinz, Habermas reconhece o potencial emancipatório da hermenêutica, compartilhado com Gianni Vattimo, embora critique a negligência do pensamento utópico e, com a autoridade de sua voz, contribua para colocar Gadamer sob a sombra de Heidegger, apesar das diferenças substanciais entre a virada para o misticismo do Ser deste último e o humanismo daquele, apontando para uma problemática mais ampla referente à relação da filosofia alemã com sua própria história e identidade, e o papel negligenciado de Platão na hermenêutica gadameriana.
Ver online : Hans-Georg Gadamer
DI CESARE, Donatella; KEANE, Niall (orgs.). Gadamer: a philosophical portrait. Bloomington, Ind: Indiana University Press, 2013.