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Homem, Realidade, Interpretação

Gilvan Fogel – estórias (Guimarães Rosa)

sábado 5 de julho de 2025

8. João Guimarães Rosa nos legou Sagarana, algo grande e à maneira de saga, isto é, grande e à maneira de lógos, a forma dizedora, mostradora – o sentido antecipador-instaurador. Este mesmo Rosa, para dizer história, no sentido grande e imediato de dar-se, acontecer, fala, em algum lugar, de acontecências. Grande, que se vem usando acima, não quer dizer de tamanho maior, nada enorme quantitativa e mensuravelmente, nada ‘grandão’ ou agigantado, mas, sim, [30] está apontando para a dimensão do grave, do intenso, do radical, do essencial. Voltando ao tema, história, acontecências, ou, como Rosa grafa para marcar a diferença, p. ex., com ciência histórica ou historiografia, estória. Assim, isto é, como acontecências, é preciso entender os títulos Estas Estórias, Primeiras Estórias, Terceiras Estórias – enfim, estórias, acontecências, devir. Estas estórias ou acontecências constituem o elemento, a textura própria instauradora de real, geradora de toda e qualquer realidade possível. Estória, acontecências, devir, isto é, gênese. Outro nome para dizer a configuração, a hora, o ato homem-realidade.

Realização de possibilidade, auto-exposição de vida – isso é estória (acontecências, devir). E é tempo se fazendo tempo. Vida como auto-gênese. Em sendo tempo se fazendo tempo (temporização), é, torna-se estória, desdobramento, auto-exposição, ou seja, descoberta, mostração, em suma, verdade, no sentido da exposição grega de alétheia, marcada, escandida e esclarecida insistentemente por Heidegger. Assim, na e como estória, tem-se, faz-se desencobrimento de ou do verbo, desocultação de interesse, exposição-explicitação de próprio ou auto-apropriação, que é interpretação, em suma, estória como realização ou gênese.

Mais uma vez, é importante observar que estória (acontecências, devir) não é mais (+) um elemento, melhor, mais um elo a se somar na cadeia, na corrente de determinações, que aqui se esboça. Falar de elo ou de corrente não é boa imagem para visualizar o que aqui se expõe, justamente porque marca enfileiramento, ordenamento crescente e sucessivo, sequenciação, com a tendência de se ver aí na série uma relação de primeiro, então ou depois um segundo, então ou depois um terceiro, etc., etc., e esta relação repetindo e evidenciando a relação de estrutura causal antecedente-consequente, fundamento-fundado. Ao se falar, agora, de estória, cabe sim, talvez, entender como um elemento, no sentido de um momento mais a caracterizar a estrutura, o ato ou o instante homem-realidade e a dinâmica de realização ou auto-realização dessa estrutura. Por ser estrutura, ato ou instante, seus ‘elementos’ são simultâneos – por isso um único e mesmo ato. [31]

Realidade, em sendo abertura (liberdade) e possibilidade, em sendo verbo, em sendo sentido-antecipador-instaurador, em sendo interesse, que se mostra como interpretação-apropriação, em sendo gênese, realização ou auto-exposição de possibilidade, de verbo, de sentido, de interesse, enfim, em sendo todo este enredado ou rede, mostrando-se como a articulação simultânea desses momentos, mostra-se, aparece, caracteriza-se igualmente como estória ou devir, isto é, toda esta estrutura é o que é, aparece tal como aparece, porque é tempo se fazendo tempo ou o tempo em sua auto-exposição, que perfaz vida, gênese. E neste mesmo contexto e precisando seguir esta mesma linha de compreensão-interpretação, que é preciso ouvir a fala, também já introduzida ou jogada acima, de verdade, isto é, de desdobramento, desocultação e descoberta de próprio, no movimento de auto-exposição de vida ou, pura e simplesmente, no jogo de realização de realidade.

Assim sendo, num sentido muito amplo, pode-se, precisa-se dizer que vida, realidade ou jogo de realização de realidade, tem ou é a forma do drama (ação), isto é, do ‘romance’, da narrativa, em suma, da estória. Um homem, p. ex., tal como o personagem na obra, no drama, na ação estórica ou na narrativa, se faz no movimento do fazer-se de estória, isto é, nas acontecências, ou seja, no argumento, na tessitura ou urdidura, no entretecimento da estória, enfim, no enredo. Sim, a estória é a substância da vida e de toda realidade possível, seu único e real argumento, sua única e real argumentação ou lógica.

Falou-se de Guimarães Rosa. Pois bem, na primeira página de “Grande Sertão: Veredas”, p. ex., Riobaldo é tão-só um “flatus vocis”, um fonema – ou um grafema, só e tão-só um sopro ou tinta preta sobre papel branco. Mas com o desabrochamento da estória, no abrir-se e deslanchar-se da narrativa, este “flatus vocis” mostra-se uma promessa, uma promessa de ser, de vir a ser e vai ganhando corpo, isto é, vai se fazendo carne, quer dizer, vai ganhando cara, fisionomia, espessura, sentimentos, idiossincrasia, víscera, miolo, tutano, desejos, caprichos, enfim, forma ou um real e autêntico é. E assim é com qualquer personagem, de qualquer obra. E isso a tal ponto, que não podemos falar do personagem da obra (do drama, da narrativa) [32] não escrita, não com-posta. Assim como não há, não pode haver o primeiro homem, i. é, o homem em si, sem real estória, sem ser sempre já um verbo, também não há, não pode haver, pois o personagem do drama não escrito, uma vez que falta, faltou tudo, a saber, o meio, o elemento, que é justo o enredo, a estória. Isso é o corpo, a forma, o princípio do real – de todo e qualquer. Assim é e pode-se recorrer a este exemplo, porque o drama, a narrativa, a estória é realização exemplar de vida. E vida se fazendo vida ou tempo se fazendo tempo. É a gênese-vida, é a vida da vida, a realidade da realidade – em suma: realização, concretização, aparecer, fazer-se visível.

É preciso que se ouça no título cervantino Novelas Exemplares (“Estórias Exemplares”!) a exemplaridade da novela, da narrativa, como gênese de vida, de realidade. Enfim, como história, devir – acontecências. Verdade, isto é, alétheia.


FOGEL, Gilvan. Homem, Realidade, Interpretação. Rio de Janeiro: Mauad X, 2015