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Introdução histórica à vidência do tempo e da morte

Mário Martins – O tempo em lendas de viagens

sexta-feira 4 de julho de 2025

Sobre o mar sem fim, navegou o abade irlandês S. Brandão, com a sua marinhagem de religiosos. E falamos também dele por em Portugal existirem apógrafos medievais das suas aventuras . Dizia-se mesmo, segundo nota Zurara, que S. Brandão passara pelo Cabo do Bojador.

Que estranhas foram as suas viagens de ilha em ilha! Viram a Cidade Desabitada, desembarcaram na Ilha das Ovelhas Gigantes, subiram para cima dum grande peixe, pensando que era uma ínsua, escutaram a música de aves misteriosas do outro mundo e aportaram à Ilha de Ailbe, povoada por monges. Nas vastas águas, assistiram à luta de morte entre duas serpentes e, mais longe, viram um dragão matar um grifo monstruoso. Uma vez, enquanto S. Brandão cantava missa, os peixes cercaram a barca, devotamente. E foram-se embora, depois da missa acabada. Sobre uma rocha martelada pelo mar, Judas, o traidor, descansava um pouco dos seus tormentos. E chegaram por fim à entrada do Paraíso, onde «não há fome nem sede nem calor nem rigor de Inverno nem precisão alguma».

Ora, foi precisamente ali que o tempo diminuiu e o dia se tornou mais curto: «Cum enim Brandanus talia ibi prospexit gaudia, de brevitate diei nimium doluit, quia longam ibi cupiebat facere moram». E era somente a orla do Paraíso!

Não têm conto as histórias da contracção do tempo, nestas viagens maravilhosas e na contemplação fascinante do Paraíso Terreal. Palácios encantados, frutas saborosas, aves falantes (ora anjos, ora almas penadas) e, por toda a parte, a sensação de estarmos entre dois mundos — o real e o irreal.

Na Aventura de Teigue, filho de Cian , o herói navega sobre os roncos do mar, descobre ilhas de pássaros desconhecidos, arribando enfim à Ilha do Lago Vermelho, um dos quatro paraísos terrestres. Não estiveram ali mais de um dia, segundo lhes pareceu. Pois bem, demoraram-se lá um ano inteiro, sem comer nem beber.

S. Amaro entrou numa cidade à beira do mar, construiu um barco e meteu-se nele, com alguns mareantes. Descobriu a Ilha da Terra Deserta, à distância de sete dias e sete noites. Apesar do nome, a ilha tinha gente a habitá-la. Uma vez, estando ele naquelas paragens, escutou uma voz misteriosa, a ordenar-lhe que embarcasse de novo. Passou o Mar Vermelho e aportou à Ilha da Fonte Clara, onde as pessoas viviam trezentos anos e morriam de velhas, sem dor nem doenças.

Três semanas habitou S. Amaro na Ilha da Fonte Clara, depois andou perdido no mar e a nave ficou dias inteiros presa nas águas geladas, à mercê das «bestas fortes marinhas». Vogaram mais três dias e três noites e desembarcaram, por fim, na Ilha dos Ermitães. Outra viagem na direcção do nascer do sol e S. Amaro aportou a uma ilha, onde havia um mosteiro de nome Vale de Flores. Por toda a parte, ribeirinhos, nobres fontes, hortas, prados e árvores de fruta.

Um velho frade, chamado Leonátis, recomendou-lhe que remassem ao longo da ribeira do mar, até chegarem a um porto de só três casas, onde ancoraram.

Neste porto das três casas, S. Amaro distribuiu tudo pelos companheiros e meteu-se por um maravilhoso vale acima, de que lhe falara Leonátis. Primeiro, encontrou dois ermitães. Contaram-lhe eles duma religiosa «dona Baralides», que descobrira o Paraíso Terreal. Estava este por aqueles sítios, mas não sabiam onde.

S. Amaro continuou pelo vale adiante e deu com um mosteiro de freiras fidalgas e santas. Era o Mosteiro da Flor das Donas, alto e formoso como só ele. E ali, Dona Baralides ensinou a S. Amaro o caminho do Paraíso Terreal.

Seguiu pela margem dum grande rio, em cujas águas vinham frutas de várias espécies e «nobres flores». Ao longe, erguia-se um castelo. Outro assim nunca ele vira! Quatro eram as torres principais. E de cada uma delas saía um rio. Em frente, estava o mais rico tendilhão do mundo, com um arco de rubis e paredes de cristal. Lá dentro, não havia frio ou quentura, nem fome ou sede.

S. Amaro «folgou ally muyto mays» do que pensou, dirigiu-se para a entrada do castelo e quis entrar lá dentro. O porteiro, porém, não o deixou. Ainda assim, abriu um pouquinho as portas, para ele espreitar. Lá estava a árvore da maçã que o nosso primeiro pai comeu, em dia aziago! Que maravilha de árvores e de campos, que beleza de flores e que doçura no canto das aves! A escutá-las, mil anos não chegariam a um dia. Donzelas coroadas de flores, donzéis a tocar instrumentos de música, canções em louvor de Deus! E toda a gente era feliz! Dava prazer contemplar tanta formosura.

S. Amaro insistiu de novo para entrar. Mas inutilmente. E o porteiro acrescentou, depois de recusar-se: «E tu, amigo, despois que aqui vieste, nê bebeste, nê mudaste as vestiduras, nê emvelheçeste». Ora, S. Amaro chegara ali havia 266 anos e não dera por tanto tempo . E estivera desde então sem comer nem beber. Mesmo por fora os anos tinham passado, sem deixarem vinco algum no santo, cujo corpo não envelhecera.

Estamos no mundo céltico, que é também nosso. Por outro lado, conta-nos Godofredo de Viterbo, no século XII, que certos monges bretões encontraram uma estátua de bronze, numa ilha perdida no mar, e que essa estátua indicava a rota a seguir n. Umas atrás das outras, as aventuras continuaram, pelo mar fora.

Ao regressarem, viram que desaparecera a antiga igreja, eram já outros os monges e até mudara a cidade, com outro povo, novo bispo e leis diferentes. Sempre era verdade que cem anos podiam parecer um dia. Porém, estes monges tinham envelhecido, como de manhã para a noite. O tempo exterior marcara-os cruelmente, enquanto por dentro se mantinha em quase imobilidade:

Non erat eclesia, quam primitus hi tenuerunt,
Non abbas, non sunt monachi velut ante fuerunt,
Non urbs, non populus, moenia prima ferunt.

Antistes novus erat, nova plebs, novus ecclesiae grex,
Est patriae nova lex, et principibus novus est Rex,
Mortua sunt vetera, singula nata nova.

Non loca, non homines, non cognovere loquelam,
Eruptis lachrymis, secum tenuere querelam,
Nam sini non patria; non homo notus erat.

Ipsi qui fuerunt hodie forma iuveniles,
Mane senescentes sunt pelle piloque seniles;
Decrepitos, viles, se miserosque vident.


MARTINS, Mário. Introdução histórica à vidência do tempo e da morte. Braga : Livraria Cruz, 1969