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David Loy – A Estória da Vida e da Morte
quinta-feira 3 de julho de 2025
A morte é o fim da minha narrativa, ou outra estória?
Estórias são o que a morte pensa que põe fim. Ela não consegue entender que elas acabam nela, mas não acabam com ela. Ursula K. Le Guin Le Guin Ursula K. Le Guin (1929-2018)
A estória mais antiga, a epopeia suméria de Gilgamesh, é sobre seus esforços para evitar a morte. Lidamos com a morte tecendo-a em estórias que diminuem sua picada, para que ela não represente um fim da vida e do sentido que ofusque toda vida e sentido.
O sentido da vida é que ela para. Kafka Kafka Kafka, Franz (1883-1924)
Se a morte é uma parede sobre a qual não conseguimos espiar, a única maneira de narrar a morte é com metáfora: um sono tranquilo, folhas caindo de uma árvore, navegar em direção ao pôr do sol...
Amor e morte são os grandes presentes que nos são dados; a maioria das vezes, são passados adiante sem serem abertos. Rainer Maria Rilke
O problema é a morte ou nossas formas de narrá-la?
Todo o nosso conhecimento apenas nos ajuda a morrer uma morte mais dolorosa do que os animais que nada sabem. Maurice Maeterlinck
Temos medo de algo que sempre acontecerá, mas não há como saber do que temos medo, portanto, não há como saber se deveríamos ter medo.
O mais horrível de todos os males, a morte, não é nada para nós, pois quando existimos, a morte não está presente; mas quando a morte está presente, então não existimos. Epicuro
Embora a antecipação da morte possa desempenhar um papel importante na minha narrativa, a morte real não pode. Estórias sobre meu nascimento (choque! dor!) e minha morte (terror! dor!) são diferentes do meu nascimento e morte físicos. Minha gênese e término permanecem condições misteriosas das quais a vida surge e para as quais retorna.
Para a vida no presente não há morte. A morte não é um acontecimento na vida. Não é um fato no mundo. Nossa vida é infinita, da mesma forma que nosso campo de visão não tem limites. Wittgenstein
A morte é apenas metade da estória. Distinguimos a morte da vida porque tememos uma e nos apegamos à outra, contudo não podemos ter uma sem a outra: o sentido de cada uma é a negação da outra. A consciência de uma pressupõe ambas. Se a vida é boa, e sempre seguida pela morte, a morte também não deve ser boa?
As alternativas não são vida ou morte, mas vida-e-morte ou... o quê?
Apenas entenda que o nascimento-e-morte é o próprio nirvana. Não há nada como nascimento e morte a ser evitado; não há nada como nirvana a ser buscado. Somente quando realizar isso estará livre do nascimento e da morte.
Dogen
Posso desaparecer da sua estória, mas como desapareço da minha própria?
O terrível da morte é que ela transforma a vida em destino. André Malraux
Quer a autoidentidade morra ou não, o objetivo do caminho espiritual não é alcançar a imortalidade para essa identidade, mas sim realizar (a distinção entre essa identidade e) meu nada.
O nada está sujeito à morte?
Perguntas sobre uma vida após a morte tendem a assumir as mesmas escolhas binárias: ou “eu” sou aniquilado ou “eu” sobrevivo de alguma forma. Quando perguntaram ao Buda o que acontece com uma pessoa iluminada após a morte, ele não respondeu porque há algo errado com a pergunta. Para que o “eu” morra, ele deve ter estado vivo antes. Essas categorias se aplicam ao meu nada?
Se vida e/ou morte é uma estória, que força o destino dessa estória pode ter sobre aquilo que não pode desempenhar um papel em nenhuma estória? Tudo o que pode ser experimentado passará, mas e quanto a uma não-coisa? Se é incorreto dizer que meu nada sobrevive à morte, é igualmente incorreto dizer que meu nada não sobrevive, já que ambas as respostas cometem o mesmo erro de categoria.
Isto não é um argumento para a sobrevivência pós-morte. Na medida em que “eu” sou uma não-coisa, não posso morrer porque nunca nasci.
O mundo inteiro tomou o caminho errado, pois teme a não-existência, embora seja o seu refúgio. Rumi
Os termos budistas mais comumente usados para narrar shunyata — aquilo que não pode ser narrado — são não-nascido, não-criado e não-produzido. O Sutra do Coração declara que todas as coisas são shunya porque são “não criadas, não aniquiladas, não impuras e não puras, não aumentando e não diminuindo.” Não há morte e não há fim para a morte.
Quando mora no Próprio Não-Nascido, mora na própria fonte de Budas e patriarcas. Bankei
De acordo com o budismo, nosso problema básico não é a morte, mas a ignorância deste não-nascido. Se é nossa natureza essencial, por que é tão difícil de realizar? O não-nascido não tem fundamento, no sentido de que não há nada para agarrar e ninguém para agarrá-lo. A liberdade que vem de entender como narramos e como re-narrar é também a insegurança máxima. Sendo sem estória em si, o nada também é sem sentido. Gravitamos em direção ao refúgio de papéis determinados dentro de narrativas previsíveis (incluindo as budistas). Ansiamos pelos significados confortáveis e prontos que tais estórias fornecem, que objetificam um mundo onde sabemos o que é importante e o que devemos fazer. Perceber que nossas estórias e significados são shunya é um fardo maior do que a maioria de nós está preparada para suportar. É mais fácil fingir que as estórias que encenamos juntos são fixas e que os papéis que desempenhamos são reais. Mas então o sofrimento dukkha que criam também se torna real.


LOY, David. World Is Made of Stories. Somerville: Wisdom Publications, 2010