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René Daumal – Monte Análogo?
“Senhor, li vosso artigo sobre o Monte Análogo. Eu acreditava ser o único, até agora, a estar convencido de sua existência. Hoje, somos dois , amanhã seremos dez, mais talvez, e poderemos tentar a expedição. E necessário que entremos em contato o mais rapidamente possível.Telefone-me assim que possível num dos números abaixo. Eu vos aguardo.
Pierre Sogol [1], passagem dos Patriarcas, 37 — Paris”.
[Seguiam cinco ou seis números de telefone onde eu poderia encontrá-lo em diferentes horários do dia.]
Eu já tinha quase esquecido o artigo ao qual ele se referia, e que tinha aparecido cerca de três meses antes, no número de maio da Revista dos Fósseis.
Lisonjeado por esse gesto de interesse por parte de um leitor desconhecido , eu experimentava ao mesmo tempo um certo mal -estar em ver como estava sendo levada a sério, quase tragicamente, uma fantasia literária que, na ocasião, até me havia exaltado bastante, mas que, agora, não passava de uma lembrança longínqua e fria.
Reli esse artigo. Era um estudo bastante conciso sobre o significado simbólico da montanha nas mitologias antigas. Os diferentes ramos do simbólico eram, havia muito tempo, o meu estudo favorito — eu acreditava ingenuamente compreender algo ali — e, além disso, eu amava a montanha como alpinista, apaixonadamente. O encontro desses dois tipos de interesses, tão diferentes, sobre o mesmo tema, a montanha, tinha colorido de lirismo certas passagens de meu artigo. [Tais encontros, tão incongruentes quanto possam parecer, estão para muitos na gênese daquilo que chamamos vulgarmente poesia ; eu faço essa observação, como sugestão, aos críticos e aos estetas que se esforçam para iluminar as entranhas desse misterioso tipo de linguagem .]
Na tradição da fabulação, eu tinha escrito essencialmente que a Montanha é o elo entre a Terra e o Céu. Seu pico toca o mundo da eternidade, e sua base se ramifica em contrafortes múltiplos no mundo dos mortais. Ela é o caminho pelo qual o homem pode elevar-se à divindade , e a divindade revelar-se ao homem. Os patriarcas e os profetas do Antigo Testamento viam o Senhor face a face em lugares elevados. É o Sinai e é o Nebo de Moisés, e são, no Novo Testamento, o Monte das Oliveiras e o Gólgota. Eu tinha ido até buscar esse antigo símbolo da montanha nas sábias construções piramidais do Egito e da Caldeia. Passando pelos arianos, eu lembrara essas obscuras lendas dos vedas, em que o soma, o “licor” que é a “semente da imortalidade ”, diz-se que reside, em sua forma luminosa e sutil,“na montanha”. Na índia, o Himalaia é a residência de Shiva, de sua esposa “Filha da Montanha”, e das “Mães” dos mundos — da mesma forma que na Grécia o rei dos deuses tinha sua corte no Olimpo. Na mitologia grega, justamente, eu encontrara o símbolo completado pela história da revolta dos filhos da Terra que, com suas naturezas e meios terrestres, tentaram escalar o Olimpo e penetrar no Céu com seus pés argilosos; não deixava isso de ser o mesmo empreendimento que perseguiam os construtores da torre de Babel, que, sem renunciar às suas ambições múltiplas e pessoais, pretendiam atingir o reino do Único impessoal? Na China, tratava-se das “Montanhas dos Bem -aventurados”, e os antigos sábios instruíam seus discípulos à beira de um precipício...
Após ter assim feito um giro pelas mitologias mais conhecidas, eu passava a fazer considerações gerais sobre os símbolos, que eu alinhava em duas classes: aqueles que são submetidos somente às regras das “proporções”, e aqueles que são submetidos, também, às regras da “escala”. Essa distinção foi feita repetidas vezes. Só lembrando-a: a “proporção” concerne às relações entre as dimensões de um monumento; a “escala, às relações entre essas dimensões e aquelas do corpo humano. Um triângulo equilátero, símbolo da Trindade, tem exatamente o mesmo valor qualquer que seja sua dimensão; ele não tem a “escala”. Por outro lado, tomem uma catedral, façam dela uma redução exata de alguns decímetros de altura; esse objeto transmitirá sempre, por sua figura e por suas proporções, o sentido intelectual do monumento, mesmo se for necessário examinar com uma lupa certos detalhes; mas ele não produzirá mais a mesma emoção , nem provocará mais as mesmas atitudes; ele não estará mais na “escala”. E aquilo que define a escala da montanha simbólica por excelência — aquela que eu propunha chamar o Monte Análogo — é a sua inacessibilidade pelos meios humanos ordinários. Ora, o Sinai, Nebo e mesmo o Olimpo tornaram-se com o tempo aquilo que os alpinistas chamam “montanhas de pastoreio”; e mesmo os mais altos picos do Himalaia não são hoje mais vistos como inacessíveis. Todos esses picos perderam, portanto, seu poder analógico. O símbolo precisou refugiar-se em montanhas míticas, como o Merou dos hindus. Mas o Merou — para utilizar esse único exemplo —, se ele não está mais situado geograficamente, não pode mais conservar seu sentido impressionante de caminho que une a Terra ao Céu; ele pode ainda significar o centro ou o eixo de nosso sistema planetário, mas não mais o meio para o homem ascender.
“Para que uma montanha possa representar o papel de Monte Análogo, eu concluía, é necessário que seu pico seja inacessível, mas a base acessível aos seres humanos, tais como a natureza os fez. Ela deve ser única e deve existir geograficamente. A porta do invisível deve ser visível.”
Eis o que eu tinha escrito. Parecia, com efeito , a partir do meu artigo, tomado ao pé da letra, que eu acreditava na existência, em algum lugar na superfície do globo, de uma montanha muito mais alta que o monte Everest, o que era, do ponto de vista de uma pessoa dita sensata, um absurdo . E eis que alguém me toma ao pé da letra. E me fala de tentar “uma expedição”! Um louco? Um vigarista?... Mas e eu! Perguntei-me de repente, eu que escrevi esse artigo, será que meus leitores não teriam o direito de me colocar a mesma pergunta? Então, serei um louco ou um vigarista? Ou simplesmente um bom escritor ? — Bem, eu posso confessar agora, mesmo ao colocar-me essas perguntas pouco agradáveis, que eu sentia, bem no fundo de mim mesmo, apesar de tudo , que alguma coisa acreditava firmemente na realidade material do Monte Análogo.
DAUMAL, René. O Monte Análogo. Romance de Aventuras Alpinas, Não-Euclidianas e Simbolicamente Autênticas. Tr. Gian Bruno Grosso. São Paulo: Editora Horus, 2007
[1] O nome daquele que aqui se apresenta e será o guia nesta busca é um anagrama de "Logos".