Página inicial > Obras Literárias > Tournier (Célébrations) – Anatomia de um anjo
Tournier (Célébrations) – Anatomia de um anjo
sábado 28 de junho de 2025
Em um de seus últimos textos, Paul Valéry sobrepôs maravilhosamente o mito de Narciso e o mistério dos anjos. Mostra um anjo sentado à beira de uma fonte, olhando-se no espelho d’água. Qual não é sua surpresa! Vê ali um homem em lágrimas, "e se espanta ao extremo de aparecer-se na onda nua essa presa de uma tristeza infinita". Pois um espírito puro não pode conhecer a mágoa, e é preciso ao anjo o artifício de uma fonte para poder derramar lágrimas.
É notável que seja justamente pelo que lhes falta que os anjos mais se distinguem dos homens. Uma velha amiga contou que tinha nove anos quando chegou a um pensionato dirigido por freiras. Tendo usado o banheiro, esqueceu-se de utilizar a capa de linho cru sob a qual deveria despir-se, lavar-se, secar-se e vestir-se novamente. A monitora percebeu a descontração e exclamou, escandalizada: "Minha pobre criança! Ignora então que seu anjo da guarda é um jovem?"
Resolve-se um tanto apressadamente a famosa questão do sexo dos anjos. A Bíblia é muito radical nesse ponto delicado. Por duas vezes, relações amorosas entre anjos e humanos desencadearam a ira devastadora de Javé. Quem se lembra, por exemplo, da causa do Dilúvio universal? Sempre se evoca a arca, por cujas vigias se vê passar a barba do bom Noé, a juba de um leão ou o pescoço de uma girafa. Mas a decisão de Javé de destruir a humanidade sob torrentes de chuva foi provocada pelos amores de certos anjos com as "filhas dos homens", e a procriação de uma raça de gigantes temíveis.
Pouco depois, é Sodoma cujos habitantes acham de seu agrado os dois anjos que desceram à casa de Ló. "E havia crianças e velhos naquela multidão", especifica o texto com horror. O castigo será uma chuva de fogo que reduzirá a cinzas a cidade e seus habitantes.
Assim, com os anjos, a heterossexualidade provoca a água do Dilúvio, e a homossexualidade, o fogo do céu. A abstinência e até a assexualidade são, nesse caso, uma precaução saudável. Aliás, que necessidade há de procriar quando se é eterno? Sexo e morte são solidários.
Não é tudo. O homem tem braços, mas não asas. O pássaro tem asas, mas não braços. Um trabalha, o outro plana. O anjo possui braços e asas. Não tem, pois, quatro membros, como os mamíferos, mas seis, como os insetos. Algumas Anunciações mostram, de fato, diante da pequena Maria pálida e desnorteada, um arcanjo Gabriel eriçado de penas, élitros e ferrões, semelhante a um enorme escaravelho dourado.
É belo, mas frágil, e nesse aparato suntuoso é prudente não exagerar. Chesterton escreveu com acerto: "Os anjos voam porque se tomam a si mesmos com leveza."
O anjo deveria contentar-se em planar. Esse foi o drama de Lúcifer. Seu nome significa Portador da Luz. Um anjo carregador, de fato? A luz era certamente pesada demais. Lúcifer estava com os braços cheios. Caiu. Lúcifer é o anjo que sabia demais. Caiu nos ramos da árvore do Conhecimento, perdendo braços, asas e até pernas. O anjo-tronco, a serpente.
De todas as funções dos anjos, a música é sem dúvida a mais adequada à sua natureza. Mas que música? O místico Angelus Choiselus escreveu: "Quando os anjos músicos oficiam para Deus, tocam-lhe J.-S. Bach. Mas quando estão entre si, tocam Mozart. E Deus vem escutar à porta."


TOURNIER, Michel. Célébrations. Paris: Mercure de France, 1999