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René Daumal – Memoráveis
terça-feira 1º de julho de 2025
Lembra-te: de tua mãe e de teu pai, e de tua primeira mentira, cujo odor indiscreto rasteja em tua memória.
Lembra-te de teu primeiro insulto àqueles que te fizeram: a semente do orgulho estava semeada, a fratura reluzia, rompendo a noite uma.
Lembra-te das noites de terror em que o pensamento do nada te arranhava o ventre, e voltava sempre para roê-lo, como um abutre; e lembra-te das manhãs de sol no quarto.
Lembra-te da noite da libertação, em que teu corpo, desatado, caindo como uma vela, respiraste um pouco do ar incorruptível; e lembra-te dos animais viscosos que te recapturaram.
Lembra-te das magias, dos venenos e dos sonhos teimosos – querias ver, tapavas os dois olhos para ver, sem saber abrir o outro.
Lembra-te de teus cúmplices e de vossos enganos, e desse grande desafio de sair da gaiola.
Lembra-te do dia em que rompeste a tela e foste apanhado vivo, fixado no lugar no estrondo de estrondos das rodas de rodas girando sem girar, tu dentro, sempre agarrado pelo mesmo instante imóvel, repetido, repetido, e o tempo dava apenas uma volta, tudo girando em três sentidos inumeráveis, o tempo se enlaçava ao contrário – e os olhos de carne só viam um sonho, só existia o silêncio devorador, as palavras eram peles secas, e o ruído, o sim, o ruído, o não, o grito visível e negro da máquina impossível te negava, o grito silencioso, "eu sou" que o osso ouve, do qual a pedra morre, do qual crê morrer o que nunca foi – e renascias a cada instante só para ser negado pelo grande círculo sem limites, todo puro, todo centro, puro exceto tu.
E lembra-te dos dias que se seguiram, quando caminhavas como um cadáver enfeitiçado, com a certeza de ser devorado pelo infinito, de ser anulado pelo único existente Absurdo.
E sobretudo lembra-te dos dias vergonhosos em que quiseste jogar tudo fora, de qualquer jeito – mas um guardião vigiava quando sonhavas, fez-te tocar tua carne, fez-te lembrar dos teus, fez-te apanhar teus trapos – lembra-te de teu guardião.
Lembra-te da bela miragem dos conceitos, e das palavras comoventes – palácio de espelhos, construído num porão; e lembra-te do homem que veio, que quebrou tudo, que te pegou com sua mão rude, te arrancou de teus sonhos, e te fez sentar nos espinhos da luz do dia; e lembra-te que não sabes lembrar.
Lembra-te que tudo se paga, lembra-te de tua felicidade, mas quando teu coração foi esmagado, era tarde demais para pagar adiantado.
Lembra-te do amigo que estendia sua razão para recolher tuas lágrimas, jorradas da fonte gelada que o sol da primavera violava.
Lembra-te que o amor triunfou quando ela e tu souberam se submeter ao seu fogo ciumento, rezando para apodrecer na mesma chama.
Mas lembra-te que amor não é de ninguém, que em teu coração de carne não há ninguém, que o sol não é de ninguém, cora ao olhar o lamaçal de teu coração.
Lembra-te das manhãs em que a graça era como um bastão brandido que te conduzia, submisso, por teus dias – feliz o gado sob o jugo!
E lembra-te que tua pobre memória entre seus dedos desajeitados deixou escapar o peixe de ouro.
Lembra-te daqueles que te dizem: lembra-te, lembra-te do prazer duvidoso da queda.
Lembra-te, pobre memória minha, das duas faces da moeda – e de seu metal único.


Ver online : DAUMAL, René. Poésie noire et poésie blanche. Paris: Éd. Voix D’Encre, 2015
DAUMAL, René. Poésie noire et poésie blanche. Paris: Éd. Voix D’Encre, 2015