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Tzvetan Todorov – Estórias Fantásticas

quinta-feira 26 de junho de 2025

Alvaro, o protagonista de O diabo apaixonado de Cazotte Cazotte Jacques Cazotte (1719-1792) , vive há vários meses com um ser, de sexo feminino que, segundo suspeita, é um espírito maligno: o diabo ou algum de seus seguidores. Seu modo de aparição indica às claras que se trata de um representante do outro mundo; mas seu comportamento especificamente humano [e, mais ainda, feminino], ofensas reais que recebe parecem, pelo contrário, demonstrar que se trata de uma mulher, e de uma mulher apaixonada. Quando Alvaro lhe pergunta de onde vem, Biondetta responde: “Sou uma Sílfide [ gênio do ar. mit. céltica e germânica ], e uma das mais importantes...” [pág. 198]. Mas, existem as sílfides? “Não podia imaginar nada do que ouvia, prossegue Alvaro. Mas, o que tinha que imaginável em minha aventura? Tudo isto me parece um sonho, dizia-me, mas, acaso a vida humana é outra coisa? Sonho de maneira mais extraordinária que outros, isso é tudo. [...] Onde está o possível? Onde o impossível?” [págs. 200-201].

Alvaro vacila, pergunta-se [e junto com ele também o faz o leitor] se o que lhe acontece é certo, se o que o rodeia é real [e então as Sílfides existem] ou se, pelo contrário, trata-se de uma simples ilusão, que adota aqui a forma de um sonho. Alvaro chega mais tarde a ter relações com esta mesma mulher que talvez é o diabo, e, assustado por esta ideia, volta a perguntar-se: “Terei dormido? Serei bastante afortunado como para que tudo não tenha sido mais que um sonho?” [pág. 274]. Sua mãe também pensará: “sonhaste esta granja e todos seus habitantes” [pág. 281]. A ambiguidade subsiste até o fim da aventura: realidade ou sonho?: verdade ou ilusão?

Chegamos assim ao coração do fantástico. Em um mundo que é o nosso, que conhecemos, sem diabos, sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Que percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então esta realidade está regida por leis que desconhecemos. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário, ou existe realmente, como outros seres, com a diferença de que rara vez o encontra.

O fantástico ocupa o tempo desta incerteza. Assim que se escolhe uma das duas respostas, deixa-se o terreno do fantástico para entrar em um gênero vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural.

O conceito de fantástico se define pois com relação ao real e imaginário, e estes últimos merecem algo mais que uma simples menção. Mas reservaremos esta discussão para o último capítulo deste estudo.

Semelhante definição, é, pelo menos, original? Encontramo-la, embora formulada de maneira diferente, a partir do século XIX.

O primeiro em enunciá-la é o filósofo e místico russo Vladimir Soloviov: “No verdadeiro campo do fantástico, existe, sempre a possibilidade exterior e formal de uma explicação simples dos fenômenos, mas, ao mesmo tempo, esta explicação carece por completo de probabilidade interna” [citado por Tomachevski, pág. 288]. Há um fenômeno estranho que pode ser explicado de duas maneiras, por tipos de causas naturais e sobrenaturais. A possibilidade de vacilar entre ambas cria o efeito fantástico.

Alguns anos depois, um autor inglês especializado em histórias de fantasmas, Montague Rhodes James, repete quase os mesmos termos: “É às vezes necessário ter uma porta de saída para uma explicação natural, mas teria que adicionar que esta porta deve ser o bastante estreita como para que não possa ser utilizada” [pág. VI]. Uma vez mais, duas são as soluções possíveis.

Temos também um exemplo alemão, mais recente: “O herói sente em forma contínua e perceptível a contradição entre os dois mundos, o do real e o do fantástico, e ele mesmo se assombra ante as coisas extraordinárias que o rodeiam” [Olga Reimann]. Esta lista poderia ser alargada indefinidamente. Advirtamos, entretanto, uma diferença entre as duas primeiras definições e a terceira: no primeiro caso, quem vacila entre as duas possibilidades é o leitor; no segundo, o personagem. Mais adiante voltaremos a tratar este ponto.

Terá que assinalar, além disso, que se as definições do fantástico aparecidas em recentes trabalhos de autores franceses não são idênticas à nossa, tampouco a contradizem. Sem nos deter muito daremos alguns exemplos tirados dos textos “canônicos”. Em Le Conte fantastique en France, Castex afirma que “O fantástico ... se caracteriza ... por uma intrusão brutal do mistério no marco da vida real” [pág. 8]. Louis Vax, em Arte e a Literatura fantástica diz que “O relato fantástico … nos apresenta em geral à homens que, como nós, habitam o mundo real mas que de repente, encontram-se ante o inexplicável” [pág. 5]. Roger Caillois, em Au couer du fantastique, afirma que “Todo o fantástico é uma ruptura da ordem reconhecida, uma irrupção do inadmissível no seio da inalterável legalidade cotidiana” [pág. 161]. Como vemos, estas três definições são, intencionalmente ou não, paráfrase recíprocas: em todas aparece o “mistério”, o “inexplicável” o “inadmissível”, que se introduz na “vida real”, ou no “mundo real”, ou na inalterável legalidade cotidiana”. Estas definições se encontram globalmente incluídas em que propunham os primeiros autores citados e que implicava já a existência de duas ordens de acontecimentos: os do mundo natural e os do mundo sobrenatural. Mas a definição do Soloviov, James, etc., assinalava além disso a possibilidade de subministrar duas explicações do acontecimento sobrenatural e, por conseguinte, o fato de que alguém tivesse que escolher entre elas. Era pois mais sugestiva, mais rica; a que propusemos derivava delas. Além disso, põe a ênfase no caráter diferencial do fantástico [como linha divisória entre o estranho e o maravilhoso], em lugar de transformá-lo em uma substância [como o fazem Castex, Caillois, etc.]. Em termos mais gerais, é preciso dizer que um gênero se define sempre com relação aos gêneros que lhe são próximos.

[...]

A vacilação do leitor é pois a primeira condição do fantástico. Mas, é necessário que o leitor se identifique com um personagem em particular, como no diabo apaixonado e o Manuscrito? Em outras palavras, é necessário que a vacilação esteja representada dentro da obra? A maioria dos textos que cumprem a primeira condição satisfazem também a segunda. Entretanto, há exceções: tal o caso de Vera de Villiers de l’Isle Adam. O leitor se pergunta neste caso pela ressurreição da mulher do conde, fenômeno que contradiz as leis da natureza, mas que parece confirmado por uma série de indícios secundários. Agora bem, nenhum dos personagens compartilha esta vacilação: nem o conde do Athol, que crê firmemente na segunda vida de Vera, nem o velho servente Raymond. Por conseguinte, o leitor não se identifica com nenhum dos personagens, e a vacilação não está representada no texto. Diremos então que esta regra da identificação é uma condição facultativa do fantástico: este pode existir sem cumpri-la; mas a maioria das obras fantásticas se submetem a ela.

Quando o leitor sai do mundo dos personagens e volta para sua própria prática [a de um leitor], um novo perigo ameaça o fantástico. Este perigo se situa no nível da interpretação do texto.

Há relatos que contêm elementos sobrenaturais sem que o leitor chegue a interrogar-se nunca sobre sua natureza, porque bem sabe que não deve tomá-los ao pé da letra. Se os animais falarem, não temos nenhuma dúvida: sabemos que as palavras do texto devem ser tomadas em outro sentido, que denominamos alegórico.

[...]

O fantástico implica pois não só a existência de um acontecimento estranho, que provoca uma vacilação no leitor e o herói, mas também uma maneira de ler, que no momento podemos definir em termos negativos; não deve ser nem “poética” nem “alegórica”. Se voltarmos para Manuscrito, vemos que esta exigência também se cumpre: por uma parte, nada nos permite dar imediatamente uma interpretação alegórica dos acontecimentos sobrenaturais evocados; por outra, esses acontecimentos aparecem efetivamente como tais, nos devemos representar isso e não considerar as palavras que os designam como pura combinação de unidades linguísticas. Em uma frase de Roger Caillois podemos assinalar uma indicação referente a esta propriedade do fantástico: “Este tipo de imagens se situa no centro mesmo do fantástico, a metade do caminho entre o que dei em chamar imagens infinitas e imagens travadas [entraves]... As primeiras procuram por princípio a incoerência e rechaçam com teima toda significação. As segundas traduzem textos precisos em símbolos que um dicionário apropriado permite reconverter, termo por termo, em discursos correspondentes” [pág. 172].

Estamos agora em condições de precisar e completar nossa definição do fantástico. Este exige o cumprimento de três condições. Em primeiro lugar, é necessário que o texto obrigue ao leitor a considerar o mundo dos personagens como um mundo de pessoas reais, e a vacilar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. Logo, esta vacilação pode ser também sentida por um personagem de tal modo, o papel do leitor está, por assim dizê-lo, crédulo a um personagem e, ao mesmo tempo a vacilação está representada, converte-se em um dos temas da obra; no caso de uma leitura ingênua, o leitor real se identifica com o personagem. Finalmente, é importante que o leitor adote uma determinada atitude frente ao texto: deverá rechaçar tanto a interpretação alegórica como a interpretação “poética”. Estas três exigências não têm o mesmo valor. A primeira e a terceira constituem verdadeiramente o gênero; a segunda pode não cumprir-se. Entretanto, a maioria dos exemplos cumprem com as três.