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Borges – Eternidade em Plotino
quinta-feira 26 de junho de 2025
Jorge Luis Borges
Borges
Jorge Luis Borges (1899-1986)
— HISTÓRIA DA ETERNIDADE
Excertos da tradução em português de Carmen Cirne Lima
Naquela passagem das Enéadas que pretende interrogar e definir a natureza do tempo, afirma-se que é indispensável conhecer previamente a eternidade, que — como todos sabem — é seu modelo e arquétipo. Essa advertência preliminar, tanto mais grave se a considerarmos sincera, parece aniquilar toda esperança de nos entendermos com o homem que a escreveu. O tempo é um problema para nós, um terrível e exigente problema, talvez o mais vital da metafísica; a eternidade, um jogo ou uma cansada esperança. Lemos no Timeu de Platão que o tempo é uma imagem móvel da eternidade; e isso é apenas um acorde que a ninguém distrai da convicção de ser a eternidade imagem feita de substância de tempo. Essa imagem, essa palavra tosca enriquecida pelas discórdias humanas, é o que me proponho historiar.
Invertendo o método de Plotino (única maneira de aproveitá-lo) começarei por lembrar as obscuridades inerentes ao tempo: mistério metafísico, natural, que deve preceder a eternidade, que é filha dos homens. Uma dessas obscuridades, não a mais árdua nem a menos bela, é a que nos impede de precisar a direção do tempo. Que flui do passado para o futuro é a crença comum, mas não mais ilógica é a contrária, aquela que Miguel de Unamuno gravou em verso espanhol:
Noturno, o rio das horas flui de seu manancial, que é o amanhã etemo... [1]
Ambas são igualmente verossímeis — e igualmente inverificáveis. Bradley nega as duas e adianta uma hipótese pessoal: excluir o futuro, que é uma simples construção de nossa esperança, e reduzir o "atual" á agonia do momento presente desintegrando-se no passado. Essa regressão temporal costuma corresponder aos estados de declínio ou insipidez, ao passo que qualquer intensidade nos parece caminhar para o futuro... Bradley nega o futuro; uma das escolas filosóficas da Índia nega o presente, por considerá-lo inapreensível. Ou a laranja está prestes a cair do galho, ou já está no chão, afirmam esses simplificadores estranhos. Ninguém a vê cair.
O tempo propõe outras dificuldades. Uma, talvez a maior, a de sincronizar o tempo individual de cada pessoa com o tempo geral das matemáticas, foi fartamente apregoada pelo recente alarma relativista e todos a recordam — ou lembram tê-la recordado até bem pouco tempo. (Eu a recupero assim, deformando-a: Se o tempo é um processo mental, como podem milhares de homens, ou dois homem diferentes, compartilhá-lo?) Outra é a destinada pelos eleatas a refutar o movimento. Pode ser compreendida nestas palavras: É impossível que em oitocentos anos de tempo transcorra um prazo de quatorze minutos, porque é obrigatório que antes hajam passado sete, e antes de sete, três minutos e meio, e antes de três e meio, um minuto e três quartos, e assim infinitamente, de modo que os quatorze minutos nunca se completam. Russel rebate esse argumento, afirmando a realidade e mesmo vulgaridade dos números infinitos que, entretanto, se não de uma só vez, por definição, não como termo "final" de um processo enumerativo sem fim. Esses algarismos anormais de Russel são uma boa antecipação da eternidade, que tampouco se deixa definir pela enumeração de suas partes.
Nenhuma das várias eternidades que os homens planejaram — a do nominalismo, a de Irineu de Lião, a de Platão — é uma agregação mecânica do passado do presente e do futuro. É uma coisa mais simples e mais mágica: é a simultaneidade desses tempos. A linguagem comum e aquele dicionário assombroso dont choque édition fait regretter la précédente, [2]de que se concebe e milhares que se perdem; mas a Inteligência Divina abarca de uma só vez todas as coisas. O passado está em seu presente, assim como também o futuro. Nada transcorre neste mundo, no qual persistem todas as coisas, quietas na felicidade de sua condição.
Passo a considerar essa eternidade, da qual derivaram as subsequentes. É verdade que Platão não a inaugura — num livro especial, fala dos "antigos e sagrados filósofos" que o precederam — mas amplia e resume com esplendor tudo o que imaginaram os anteriores. Deussen o compara ao ocaso: luz apaixonada e final. Todas as concepções gregas de eternidade convergem em seus livros, ora rechaçadas, ora tragicamente adornadas. Por isso faço-o preceder a Irineu, que ordena a segunda eternidade: a coroada pelas três pessoas, distintas mas inextricáveis.
Diz Plotino com notório fervor: Toda coisa no céu inteligível também é céu, e ali a terra é céu, como também os animais, as plantas, os homens e o mar. Têm por espetáculo um mundo que não foi gerado. Cada um se vê nos outros. Não há nesse reino coisa que não seja diáfana. Nada é impenetrável, nada é opaco e a luz encontra a luz. Todos estão em toda parte, e tudo é tudo. Cada coisa é todas as coisas. O sol é todas as estrelas, e cada estrela é todas as estrelas e o sol Ninguém caminha ali como sobre uma terra estranha. Esse universo unânime, essa apoteose da assimilação e do intercâmbio, não é contudo a eternidade; é um céu limítrofe, não inteiramente emancipado do número e do espaço. Esta passagem do quinto livro quer exortar à contemplação da eternidade, ao mundo das formas universais: Que os homens a quem maravilha este mundo — sua capacidade, sua beleza, a ordem de seu movimento contínuo, os deuses manifestos ou invisíveis que o percorrem, os demônios, árvores e animais — elevem o pensamento a essa Realidade, da qual tudo isto é cópia. Verão aí as formas inteligíveis, não de eternidade concedida mas eternas, e verão também a seu comandante, a Inteligência pura, e a Sabedoria inalcançável e a idade genuína de Cronos, cujo nome é Plenitude. Todas as coisas imortais estão nele, cada intelecto, cada deus e cada alma. Todos os lugares lhe são presentes; onde irá? Está feliz, para que provar mudança e vicissitude? E essa felicidade não é coisa adquirida, de que carecesse no início. Numa só eternidade as coisas são suas: essa eternidade que o tempo arremeda ao girar em tomo da alma, sempre desertor de um passado, sempre cobiçoso de um futuro.
As repetidas afirmações de pluralidade dispensadas pelos parágrafos anteriores podem induzir-nos ao erro. O universo ideal a que nos convida Plotino aprecia menos a variedade que a plenitude; é um repertório seleto, que não tolera a repetição e o pleonasmo. É o museu imóvel e terrível dos arquétipos platônicos. Não sei se foi visto por olhos mortais (fora da intuição visionária ou do pesadelo) ou se o grego distante que o concebeu chegou a representá-lo, mas pressinto nele algo de museu: quieto, monstruoso e classificado... Trata-se de uma imaginação pessoal da qual pode prescindir o leitor, do que não convém que prescinda é de alguma informação sobre esses arquétipos platônicos, ou causas primordiais ou ideias que povoam e compõe a eternidade.
É impossível aqui uma discussão prolixa do sistema platônico, mas não certas advertências de intenção propedêutica. Para nós, a última e firme realidade das coisas é a matéria — os elétrons giratórios que percorrem distâncias estelares na solidão dos átomos -; para os capazes de platonizar, a espécie, a forma. No terceiro livro da Enéadas, lemos que a matéria é irreal: uma simples e oca passividade que recebe as formas universais como um espelho as receberia; estas a agitam e povoam sem alterá-la. Sua plenitude é precisamente a de um espelho, que aparenta estar cheio e está vazio; é um fantasma que nem sequer desaparece, porque não tem nem ao menos a capacidade de cessar. O fundamental são as formas. Repetindo Plotino, disse delas Pedro Malón de Chaide, muito depois: Deus fez como se tivésseis um sinete oitavado, de ouro, tendo numa parte um leão esculpido; na outra, um cavalo; noutra uma águia, e assim nas danais; e um pedaço de cera imprimísseis o leão; noutro, a águia; noutro, o cavalo; é claro que tudo o que está na cera está no ouro, e só podeis imprimir o que ali tendes esculpido. Mas há uma diferença, que, no final, o que está w cera é cera, e vale pouco; mas o que está no ouro é ouro e vale muito. Nas criaturas estão estas perfeições finitas e de pouco valor; em Deus são de ouro, são o próprio Deus. Daí podemos inferir que a matéria ê nada.
Consideramos esse critério mau e até inconcebível, e não obstante o aplicamos continuamente. Um capítulo de Schopenhauer não é o papel nas oficinas de Leipzig nem a impressão, nem as delicadezas e perfis da escritura gótica, nem a enumeração dos sons que o compõem nem sequer a opinião que temos dele; Miriam Hopkins é feita de Miriam Hopkins, não dos princípios nitrogenados ou minerais, hidratos de carbono, alcalóides e graxas neutras que formam a substância transitória desse fino espectro de prata ou essência inteligível de Hollywood. Essas ilustrações ou sofismas podem exortar-nos a tolerar de boa vontade a tese platônica. Vamos formulá-la assim: Os indivíduos e as coisas existem na medida em que participam da espécie que os inclui, que é sua realidade permanente Procuro o exemplo mais conveniente: o de um pássaro. O hábito de andarem bandos, a pequenez, a identidade de traços, a antiga ligação com os dois crepúsculos, o do princípio dos dias e o de seu término, a circunstância de serem mais frequentes ao ouvido do que à visão — tudo isso nos incita a admitir a primazia da espécie e a quase perfeita nulidade dos indivíduos. [3] Sem erro, Keats pode pensar que o rouxinol que o encanta é o mesmo que Rute ouviu nos trigais de Belém de Judá; Stevenson erige um só pássaro que consome os séculos: o rouxinol devorador do tempo. Schopenhauer, o apaixonado e lúcido Schopenhauer, apresenta uma razão: a pura atualidade corporal em que vivem os animais, seu desconhecimento da morte e das lembranças. Logo acrescenta, não sem um sorriso: Quem me ouvir afirmar que o gato cinzento a brincar no pátio agora é o mesmo que brincava e fazia travessuras há quinhentos anos, pensará de mim o que quiser, mas loucura mais estranha é imaginar que fundamentalmente seja outro. E depois: Destino e vida de leões exige a leonidade que, considerada no tempo, è um leão imortal que se mantém mediante a infinita reposição dos indivíduos, cuja geração e cuja morte formam a força dessa figura imperecível. E antes: Uma infinita duração precedeu ao meu nascimento; o que fui eu enquanto isso? Metafisicamente, poderia talvez responder-me: "Eu sempre fui eu; quer dizer, todos que disseram eu durante esse tempo não eram outros senão eu."
Presumo que a eterna Leonidade possa ser aprovada pelo meu leitor, que sentirá um alívio majestoso ante esse único Leão, multiplicado nos espelhos do tempo. Não espero o mesmo do conceito de eterna Humanidade: sei que nosso eu o repele, e que prefere derramá-lo sem medo sobre o eu dos outros. Mau sinal; formas universais muito mais árduas nos propõe Platão. Por exemplo, a Mesidade ou Mesa Inteligível que está nos céus: arquétipo quadrúpede que perseguem, condenados ao sonho e à frustração, todos os marceneiros do mundo. (Não posso negá-la totalmente: sem uma mesa ideal, não teríamos chegado a mesas concretas.) Por exemplo, a Triangularidade: eminente polígono de três lados que não está no espaço e que não se quer degradar a equilátero, escaleno ou isósceles. (Tampouco o repudio; é o das cartilhas de geometria.) Por exemplo: a Necessidade, a Razão, a Postergação, a Relação, a Consideração, o Tamanho, a Ordem, a Lentidão, a Posição, a Declaração, a Desordem. Já não sei o que opinar sobre essas comodidades do pensamento elevadas a formas; penso que homem algum as poderá intuir sem o auxilio da morte, da febre ou da loucura. Esquecia-me de outro arquétipo que abrange a todos e os exalta: a eternidade, cuja cópia despedaçada é o tempo.
Desconheço se meu leitor precisa de argumentos para descrer da doutrina platônica. Posso fornecer-lhe muitos: um, a agregação incompatível de vozes genéricas e de vozes abstratas que coabitam sans gêne na população do mundo arquétipo; outro, a reserva de seu inventor sobre o procedimento que as coisas utilizam para participar das formas universais; outro, a conjetura de que esses mesmos arquétipos assépticos padecem de mistura e variedade. Não são insolúveis: são tão confusos como as criaturas do tempo. Fabricados à imagem das criaturas, repetem essas mesmas anomalias que querem resolver. A Leonidade, digamos, como prescindirá da Soberba e da Ruividão, da Jubidade e da Garridade? A essa pergunta não há resposta e não pode haver: não esperemos do termo leonidade uma virtude muito superior à que tem essa palavra sem o sufixo. [4]
Volto à eternidade de Plotino. O quinto livro das Enéadas inclui um inventário muito geral das partes que a compõem. Está ali a Justiça, assim como os Números (até qual?) e as Virtudes e os Atos e o Movimento, mas não os erros e as injúrias, que são enfermidades de uma matéria em que se moldou uma Forma. A Música está ali, não enquanto melodia, mas sim enquanto Harmonia e Ritmo. Da patologia e da agricultura não há arquétipos, porque não são necessárias. Ficam excluídas igualmente a fazenda, a estratégia, a retórica e a arte de governar — ainda que, ao longo do tempo, retirem algo da Beleza e do Número. Não há indivíduos, não há uma forma primordial de Sócrates nem sequer de Homem Alto ou de Imperador; há, de modo geral, o Homem. Entretanto, estão ali todas as figuras geométricas. Das cores, apenas as primárias: não há Cinzento nem Purpúreo nem Verde nessa eternidade. Em ordem ascendente, seus arquétipos mais antigos são estes: a Diferença, a Igualdade, o Movimento, a Quietude e o Ser.


Ver online : Jorge Luis Borges
[1] O conceito escolástico do tempo como a fluência do potencial no atual tem afinidade com essa ideia. Cf os objetos eternos de Whitehead, que constituem o "reino da possibilidade" e ingressam no tempo.
[2] "de que cada edição faz lamentar a precedente." (N. do T.)
[3] Vivo, Filho de Despeito, o improvável Robinson metafísico do romance de Abubeker Abentofail, resigna-se a coma as frutas e os peixes que são abundantes em sua ilha, sempre cuidando para que nenhuma espécie se perca e por tua culpa o universo se empobreça.
[4] Não quero me despedir do platonismo (que parece glacial) sem transmitir esta observação, na esperança de que lhe dêem prosseguimento e a justifiquem: O genérico pode ser mais intenso que o concreto. Casos ilustrativos não faltam. Quando menino, veraneando no norte da província, a planície arredondada e os homens que tomavam mate na cozinha me interessaram, mas minha felicidade foi incrível quando soube que esse arredondado era o "pampa" e esses homens, "gaúchos". O mesmo ocorre com o imaginoso que se apaixona. O genérico (o nome repetido, o tipo, a pátria, o destino admirável que lhe atribui, prevalece sobre os traços individuais, que são tolerados graças ao que foi dito anteriormente.
O exemplo extremo, o de quem se apaixona por ouvir falar, é muito comum nas literaturas persa e árabe. Ouvir a descrição de uma rainha — os cabelos semelhantes às noites da separação e à emigração, mas o rosto como o dia da delícia, os seios como esferas de marfim que dão luz às luas, o andar que envergonha os antílopes e provoca o desespero dos salgueiros, os pesados quadris que a impedem de ficar de pé, os pés estreitos como ponta de lança — e apaixonar-se por ela até a placidez e a morte, é um dos temas tradicionais das 1001 Noites. Leia-se a história de Badrbasim, filho de Sharimã, ou a de Ibrahim e Yamila.