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Lima Vaz (1991:133-134) – Nietzsche

A presença de Nietzsche  , como a de Marx, é uma presença difusa, mas poderosamente determinante em vários campos da cultura contemporânea. No que diz respeito à filosofia  , sua obra se apresenta sobretudo como crítica   da cultura e como proposição de uma nova ideia do homem  . Nietzsche retoma, dando-lhes novo sentido  , as questões de Kant que convergem para a interrogação “o que é o homem?” Essa interrogação, para Nietzsche, formula-se não no plano clássico da essência (Wesen) e sim na perspectiva do devir (Werden). Desse modo, a interrogação desdobra-se na sequência de três   questões fundamentais: o que foi o homem; ou seja, sua aparição   emergindo da natureza   e da vida  ; o que o homem não é, atingido pela doença da cultura e pelo ressentimento ou vingança contra a vida e o devir; finalmente, o que o homem pode e deve ser  , onde aparece o tema do homem como transição para o super-homem.

A visão   nietzschiana do homem é articulada em dois   planos epistemológicos: o plano metafísico e o plano da crítica da cultura. No plano metafísico, os temas dominantes são o da vontade em vista do poder   (Wille zur Macht) e o do retomo eterno do mesmo (ewige Wiederkehr des Gleichen). A Wille zur Macht, cujo conceito apresenta matizes diversos e corresponde, segundo Heidegger, ao conceito de ser   da metafísica   moderna, tematiza o ser como valor ou, mais exatamente, representa o ser como fonte   criadora da tábua dos valores  , e de sua hierarquização. Sendo bipolar a escala de valores, pois a cada valor corresponde um   contravalor, é necessário admitir igualmente a bipolaridade estrutural da Wille zur Macht. Sua forma   suprema no sentido positivo é o retomo eterno do mesmo, que é o pensamento mais abissal e a mensagem última de Zaratustra. Ele é a afirmação do selo da eternidade impresso sobre o devir ou a aceitação jubilosa, o sim absoluto   em face do devir. No nível da crítica da cultura, os temas dominantes do pensamento de Nietzsche são o niilismo   como diagnose da cultura ocidental, a genealogia da moral   e dos contravalores que estão em oposição à vida, bem   como o anúncio do super-homem.

A visão nietzschiana do homem define-se, portanto, seja em oposição ao zoon logon echon da tradição   grega, seja ao homem imago Dei da tradição cristã. Em Nietzsche se cumpre, por outro lado e de modo radical, a dissolução da imagem   ocidental do homem cujos inícios remontam à Renascença. A dissolução nietzschiana atinge seja a posição do homem no cosmos  , profundamente atingida pela descentração operada pelo sistema copernicano e pelo caráter aleatório da evolução da vida, seja sua estrutura   interior com a rejeição do conceito de alma   espiritual. Nietzsche empreende, com efeito  , uma crítica radical de toda a tradição dualista que, para ele, culmina no dualismo cartesiano, que faz da consciência   o núcleo ontológico do homem. A consciência é, para Nietzsche, apenas o instrumento de uma unidade superior que ele denomina “corpo  ” (Leib) e que constitui fatalidade do indivíduo.

É a partir do conceito englobante de corpo que Nietzsche descreve a estrutura do indivíduo em seus diversos aspectos ou níveis e, partindo dessa estrutura, o movimento da vida individual e social que culmina no ato   criador. É esse ato que define o sentido mais profundo do ser humano como possibilidade   ou como ponte e transição para o super-homem. A doutrina antropológica de Nietzsche é dominada por um radical imanentismo que se exprime no retomo eterno. Ela implica igualmente o chamado “perspectivismo” na teoria do conhecimento  , trazendo consigo uma crítica radical do conceito clássico da verdade  . Nietzsche está na origem de uma importante corrente filosófica dos começos deste século, a chamada “filosofia da vida” (Lebensphilosophie), conquanto seus mais importantes representantes como G. Simmel e H. Bergson não tenham seguido a trilha nietzschiana.


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LIMA VAZ, H. C. de. Antropologia filosófica. São Paulo: Loyola, 1991