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Arquivo Pessoa - Obra Édita

Fernando Pessoa - Considerar tudo como acidente de uma ilusão irracional

Way of the Serpent

domingo 29 de junho de 2025

Way of the Serpent.

Considerar todas as coisas como accidentes de uma illusão irracional, embora cada uma se apresente racional para si mesma — nisto reside o principio da sabedoria. Mas este principio da sabedoria não é mais que metade do entendimento das mesmas coisas. A outra parte do entendimento consiste no conhecimento d’essas coisas, na participação intima d’ellas. Temos que viver intimamente aquillo que repudiamos. Nada custa a quem não é capaz de sentir o Christianismo o repudiar o Christianismo; o que custa é repudial-o, como a tudo, depois de verdadeiramente o sentir, o viver, o ser. O que custa é repudial-o, ou saber repudial-o, não como fôrma da mentira, senão como fórma da verdade. Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrarios, não os acceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo — quando o homem se ergue a este pincaro, está livre, como em todos os píncaros, está só, como em todos os píncaros, está unido ao céu, a que nunca está unido, como em todos os píncaros.

A luz falsa da realidade, a luz falsa da ficção, a luz falsa da iniciação e do secreto — dia, crepusculo, noite, que são ellas a quem contempla a Razão limpa, a Serpente colleante atravez de mais que os mundos?

A Serpente está acima das ordens e dos systemas, e, ainda que ascenda como o sentido d’elles, dispensa as linhas e os caminhos. O seu movimento, para a direita na ordem inferior das coisas e dos seres, é-o apenas para que possa ser para a esquerda na ordem superior d’elles. O que os homens não podem conseguir senão dominando-se, ou conjugando-se, ou impondo-se, consegue a Serpente sòsinha na sua liberdade. Para ella mandar é subordinar-se á ideia de mandar; livre e cauta, ella segue rasteira atravez do mundo, e do espirito, até que sahe do mundo e do espirito.

Ella liga os contrarios verdadeiros, porque, ao passo que os caminhos do mundo são, ou da direita, ou da esquerda, ou do meio, ella segue um caminho que passa por todos e não é nenhum. Ella parte, como o caminho direito e o esquerdo, do Instincto para Deus, mas não sofre a quebra onde os triangulos se unem; não fórma angulo comsigo mesma.

(Não a traçam os symbolos senão em O ou em S, limitando ou evitando o mundo.) Nem ascende sem quebra, como o caminho medio, do Instincto a Deus. Conhecendo que ha outros caminhos, que não o medio, ella reconhece-os, pois se desvia do medio, e repudia-os, pois não segue a nenhum d’elles. Ao sahir do vertice instinctivo, ao sahir para o vertice divino, ella roça a curva produzida da vesica involvente, e assim mostra que sabe d’ella; mas roça-a e passa-a, e não segue a sua curva nem a sua maneira. Ella assim se distingue de todos os modos e condições de Deus e dos Seres. Onde parece que é egual é differente, e os dois (por assim dizer) que a formam são oppostos em seu feitio e natureza. No baixo mundo ella é a lua crescente, no mundo superior a minguante...

Ella não conhece os mysteriös mas os envolve, desvia-se dos caminhos e das iniciações; deixa a sciencia por onde passa; nega a magia, que atravessa; e quando chega a Deus não para.

(Esp. 54A-9)


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CENTENO, Y. K.. Fernando Pessoa e a filosofia hermética. Fragmentos do espólio. Lisboa: Editorial Presença, 1985.