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Matias Aires – Reflexões sobre a vaidade dos homens

segunda-feira 7 de julho de 2025

Eu que disse mal das vaidades, vim a cair na de ser autor: verdade é que a maior parte destas Reflexões escrevi sem ter o pensamento naquela vaidade; houve quem a suscitou, mas confesso que consenti sem repugnância, e depois quando quis retroceder, não era tempo, nem consegui o ser anônimo. Foi preciso pôr o meu nome neste livro, e assim fiquei sem poder negar a minha vaidade. A confissão da culpa costuma fazer menor a pena.

Não é só nesta parte em que sou repreensível: é pequeno este volume, mas pode servir de campo largo a uma censura dilatada. Uns hão de dizer que o estilo oratório, e cheio de figuras, era impróprio na matéria; outros hão de achar que as descrições, com que às vezes me afasto do sujeito, eram naturais em verso, e não em prosa; outros dirão que os conceitos não são justos, e que alguns já foram ditos; finalmente outros hão de reparar que afetei nas expressões alguns termos desusados e estrangeiros. Bem sei que contra o que eu disse, há muito que dizer; mas é tão natural nos homens a defesa, que não posso passar sem advertir que se os conceitos neste livro não são justos, é porque em certo gênero de discursos estes não se devem tomar rigorosamente pelo que as palavras soam, nem em toda a extensão, ou significação delas. Se os mesmos conceitos se acham ditos, que haverá que nunca o fosse? E além disto os primeiros princípios, ou as primeiras verdades, são de todos, nem pertencem mais a quem as disse antes do que a aqueles que as disseram depois. Se o estilo é impróprio, também pode ponderar-se que no modo de escrever às vezes se encontram umas tais imperfeições, que têm não sei que gala, e brio: a observância das regras nem sempre é prova da bondade do livro; muitos escreveram exatamente, e segundo os preceitos da arte, mas nem por isso o que disseram foi mais seguido, ou aprovado: a arte leva consigo uma espécie de rudeza; a formosura atrai só por si, e não pela sua regularidade; desta sabe afastar-se a natureza, e então é que se esforça, e produz coisas admiráveis; do fugir das proporções, e das medidas, resulta muitas vezes uma fantasia tosca e impolida, mas brilhante e forte. Nada disto presumo se ache aqui; o que disse foi para mostrar que ainda em um estilo impróprio se pode achar alguma propriedade feliz e agradável.

Escrevi das vaidades, mais para instrução minha que para doutrina dos outros, mais para distinguir as minhas paixões que para que os outros distingam as suas, por isso quis de alguma forma pintar as vaidades com cores lisonjeiras, e que as fizessem menos horríveis e sombrias, e por consequência menos fugitivas da minha lembrança, e do meu conhecimento. Mas se ainda assim fiz mal em formar das minhas Reflexões um livro, já me não posso emendar por esta vez, senão com prometer que não hei de fazer outro; e esta promessa entro a cumprir já, porque em virtude dela ficam desde logo suprimidas as traduções de Quinto Curcio e de Lucano. As ações de Alexandre e César, que estavam brevemente para sair à luz no idioma português, ficam reservadas para serem obras póstumas, e talvez que então sejam bem aceitas; porque os erros facilmente se desculpam em favor de um morto; se bem que pouco vale um livro, quando para merecer algum sufrágio necessita que primeiro morra o seu autor; e com efeito é certo que então o aplauso não procede de justiça, mas vem por compaixão e lástima.

Não me obrigo porém a que (vivendo quase retirado) deixe de ocupar o tempo em escrever em outra língua; e ainda que a vulgar é um tesouro, que contém riqueza imensa para quem se souber servir dela, contudo não sei que fatalidades me têm feito olhar com susto, e desagrado, para tudo quanto nasceu comigo; além disto, as letras parece que têm mais fortuna quando estão separadas do lugar em que nasceram; a mudança de linguagem é como uma árvore que se transplanta, não só para frutificar melhor, mas também para ter abrigo.

MATIAS AIRES Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) RAMOS DA SILVA DE EÇA


MATIAS AIRES. Reflexões sobre a Vaidade dos Homens. São Paulo: Martins Fontes, 1996.