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Alceu Amoroso Lima – Matias Aires
segunda-feira 7 de julho de 2025
Na “vaidade”, que Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) coloca como centro de suas meditações sobre o homem e a vida, não há apenas um conceito do homem e sim uma concepção geral do Universo. Por antecipação dos modernos filósofos existencialistas, que tomam de um conceito, como a angústia, o impulso vital, o risco, a luta, e daí partem para a compreensão do Universo todo, assim parte Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) da vaidade humana, como origem de toda a sua compreensão das coisas. Não chega nunca a definir a vaidade. Nem mesmo a define como indefinível, a exemplo do que faz com o amor (fragmento 89). Dá como subentendido o sentido do termo, como sendo uma paixão ou mais precisamente uma “concuspiscência” (fragmento 67) que leva o homem a cuidar mais das aparências que das substâncias e a viver de mentiras e não de verdades.
Há, pois, três termos essenciais na filosofia do nosso primeiro moralista — a corrupção irremediável e completa da natureza humana, a vaidade da vida social em todas as suas manifestações e o poder inapelável da Providência e de sua manifestação temporal: a Natureza. A Providência, a Natureza e o Homem são os três termos do universo de Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) . Sendo embora o seu livro aprovado e mesmo louvado pelo Santo Ofício, nele não vemos nem uma vez menção sequer do Cristo e só uma, acidentalmente, da Igreja. Revela mesmo tendências ao menos antimonásticas, se não totalmente anticlericais como o seu século. E de notar ainda, nesse universo, mais estoico do que cristão, um elemento que, em seu parecer, divide os homens em duas categorias: os monarcas e os simples mortais. Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) aceita integralmente a doutrina da instituição régia de direito divino direto, sem nenhuma intervenção da Igreja, o que, como se sabe, foi a base do absolutismo real posterior ao Renascimento. A própria condição de soberano, aliás, a que Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) atribuía privilégios de isenção tão extraordinários — como verá o leitor da leitura, entre outros, dos fragmentos 51, 133 e 134 —, não é uma condição totalmente isenta das paixões comuns aos seres humanos, pois ele admite a existência do tirano (fragmento 52).
O homem, em todo o caso, é um ser radicalmente corrompido. “Toda a ciência se corrompe no homem; porque este é como um vaso de iniquidade, que tudo o que passa por ele fica inficionado” (fragmento 125) e por isso é que “um homem às avessas seria um homem perfeito” (fragmento 75). Sua concepção do homem é a concepção do pessimismo calvinista. Ao passo que Descartes atribuía, no jogo das paixões, uma força predominante à vontade humana, parece Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) delegar à Providência o poder único de arrancar a “miserável condição humana” ao domínio invencível da vaidade que tudo corrompe, em tudo penetra, tudo reduz a um irremediável domínio das paixões viciosas. Assim como o homem de Freud é governado pela concupiscenda da carne, o homem de Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) é governado pela concupiscenda do espírito. “A nossa natureza propende para o mal... No exercício do mal achamos uma espécie de doçura, e de naturalidade; as virtudes praticam-se por ensino; o vício sabe-se, a virtude aprende-se” (fragmento 75). Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) pode ser chamado o nosso anti-Rousseau.
Tem-se mostrado, nele, a influência de La Rochefoucauld. É certo que ambos têm do homem uma opinião radicalmente pessimista. Aliás, a exaltação que do homem e de sua razão ia fazer o século XVIII era uma espécie de reação contra o conceito depreciativo do homem que fora o do século XVII. Os espíritos mais afastados entre si, como Hobbes ou Massillon, dentro é certo de uma concepção geral da vida totalmente diversa, têm do homem o mesmo conceito sombrio e desalentado. E nesse sentido é que Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) reflete mais o espírito do século XVII que o do século XVIII. Enquanto este diviniza a razão, para Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) a própria razão outra coisa não é senão um efeito de nossa vaidade, que nasce exatamente em nós, apenas desponta a idade da razão. “Como em nós tudo é vaidade, também a nossa razão não é outra coisa mais do que a nossa mesma vaidade” (fragmento 17). Se Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) refletisse apenas o espírito do seu tempo, como o fez o otimismo didático de sua irmã Teresa Margarida, seu modelo seria Vauvenargues, que nesse início do século XVIII iniciava exatamente a reação do otimismo que iria caracterizar o novo século, contra o amargo pessimismo que caracterizara, não a filosofia, mas os moralistas do século XVII. Não era entretanto no amável Vauvenargues mas nos sombrios La Rochefoucauld, Pascal, La Bruyère, Bossuet, Massillon, que o nosso Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) ia buscar os modelos e os mestres do seu pensamento.
Apenas, para Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) , a vaidade não é apenas uma força negativa. Sendo ela um efeito da corrupção completa da natureza humana, encontramo-la misturada a todos os nossos movimentos, tanto para o bem como para o mal. E nesse sentido é que verificamos ser a vaidade, na filosofia de nosso velho moralista, não como habitualmente se considera uma paixão entre as demais, e sim uma paixão sobre ou sob as demais, ou antes uma condição geral da natureza corrompida, radicalmente corrompida. A vaidade leva à sociedade, à ciência, e até à virtude. “Destes mesmos delírios resulta e depende a sociedade; porque a vaidade de adquirir fama infunde aquele valor nos homens, que quase chega a transformá-los em muralhas para defesa das cidades e dos reinos: a vaidade de serem atendidos os reduz à trabalhosa ocupação de indagarem os segredos da divindade, o giro dos astros, e os mistérios da natureza; a vaidade de serem leais os faz obedientes; a vaidade de serem amados os faz benignos; e finalmente a vaidade, ou amor da reputação os faz virtuosos” (fragmento 30; cf. fragmentos 8, 36 e 75).
Se o pessimismo sobre a condição humana é o mesmo em La Rochefoucauld que em Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) , é análogo o fundamento que dão a esse pessimismo. O que em Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) é a vaidade, é em La Rochefoucauld o amour propre ou o amour de soi [1]. A vaidade, para o autor das Reflexions morales, é uma paixão entre as demais. Para o nosso moralista, como já vimos, é ela a concupiscenda fundamental do homem e a síntese, com o amor, da sua natureza. Pois é certo que Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) atribui igualmente uma grande importância ao amor, no seu quadro sombrio da natureza humana. Embora o faça, ao próprio amor, dependente da vaidade onipresente e onipotente. “Quem dissera que o amor, que é como a alma de toda a natureza, tenha na vaidade o seu princípio e, algumas vezes, o seu fim” (fragmento 88).
Aliás, ao escrever sobre o amor como ao escrever sobre os quadros da natureza física, Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) se nos apresenta em carne e osso, passeando pelas serras da Corujeira, a ouvir o silêncio e a dialogar com a solidão dos cerros queridos, onde passava a maior parte dos seus dias, longe dos homens e meditando sobre a miséria de sua condição na terra. Eis — entre outros muitos traços admiráveis que o leitor saboreará neste livro tão cheio de encanto, de sutileza e de profundidade de pensamento, embora de um pensamento tão penetrado pelos erros de uma insuficiente concepção da vida — eis um texto em que o nosso patrício de há dois séculos parece conversar conosco e contar-nos alguma grande decepção de seu coração aparentemente frio e analítico. “No mesmo retiro temos todo o mundo no coração, e neste vivem as paixões então mais concentradas, e por isso mais vigorosas, e mais fortes: o ser o lugar mais apertado não nos livra do combate, antes o faz mais arriscado; a vaidade é como o amor; este quando o deixamos sempre nos fica uma saudade lenta, que insensivelmente nos devora; porque é um mal, cuja privação se sente como outro mal maior... Verdadeiramente perdida a vaidade, e perdido o amor, que nos fica?” (fragmento 46). A tarde fria desce sobre as colinas de Agualve e o velho Matias fecha a janela do seu casarão, melancólico e vazio, como o seu coração celibatário.
Hoje que, graças às pesquisas de Ernesto Enes, podemos ligar os textos das Reflexões aos episódios da vida de Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) , compreendemos bem como esse livro é, como do Montaigne, un livre de bonnefoy. Nele não existe apenas a arquitetura de um sistema racional. Existe a experiência de uma vida e o reflexo de um caráter. Vida solitária e triste, a despeito de tudo o que a fortuna, a cultura, o gênio lhe teriam permitido obter. Caráter misantropo e rebelde, que viveu sempre em oposição ao seu século e ao seu meio, sem ter entretanto a disposição de intervir nos acontecimentos e participar ativamente da luta dos partidos ou mesmo das ideias. Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) viveu longe da sociedade, mas viveu corajosamente dizendo à sociedade verdades duras de serem ouvidas, particularmente no tempo em que foram escritas. Leiam-se, por exemplo, os fragmentos que dedicou à nobreza e nos quais foi de uma dureza que dificilmente lhe teriam perdoado os salões do tempo, caso tivesse insistido em frequentá-los, como por um momento o tentou em 1744.
Com os anos, foi crescendo a sua misantropia. “Tudo no mundo são sombras, que passam; as que são maiores, e mais agigantadas, duram mais horas, mas também se extinguem” (fragmento 29). E muito antes de Napoleão ou de Hitler, meditando apenas sobre Alexandre e César, tem páginas admiráveis, bebidas nas fontes mais puras da sabedoria, contra a ilusão dos homens que se julgaram semideuses (fragmento 78). A ideia da igualdade dos homens, tão do século XVIII, aparece também em suas reflexões (fragmentos 79 e 138).
Se o mundo é sombra, também é movimento, diz o nosso Luciano.
Tudo passa, tudo muda, tudo se escoa. “A falta de mudança é o mesmo que falta de vida” (fragmento 102). E no meio dessa “metamorfose” contínua que é a vida (fragmento 9), o nosso pensamento é a sombra de uma sombra. E o saber humano a mais fátua das vaidades.
“A ciência humana toda consiste em dúvida. Ainda dos primeiros princípios visíveis, e materiais, só conhecemos a existência, a natureza não; porque a contextura do universo é em si unida e regular, em forma que na ordem de suas partes não se podem conhecer umas, sem se conhecerem todas; por isso todas se ignoram, porque nenhuma se conhece: só a vaidade costuma decidir sem embaraço, porque não chega a imaginar-se capaz de erro” (fragmento 39). E por isso mesmo “quase tudo transcende à nossa compreensão... não vemos, nem buscamos os objetos, mas a sombra deles” (fragmento 40). Como tudo isso está longe do otimismo do conhecimento que Descartes julgara, um século antes, introduzir para sempre no pensamento humano.
Aliás o ceticismo filosófico de Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) também tem qualquer coisa do ceticismo filosófico de Pascal. La philosophie ne vaut pas une heure de peine [2], escrevia este. E de ver, entretanto, que o pessimismo pascaliano era essencialmente cristão, ao passo que o pessimismo de Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) era, como o de La Rochefoucauld, de natureza filosófica e não religiosa.
Alguns pontos principais, poderíamos apontar na afinidade que encontramos em Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) com o pensamento pascaliano — o ceticismo filosófico, o experimentalismo científico, a paixão pelas ciências físicas e matemáticas, a preocupação pelo homem como centro de toda a pesquisa especulativa e a consideração de sua grandeza e de sua miséria, o rigorismo de inspiração jansenista, as contradições do homem, etc. Outras influências, sem dúvida, separam o providencialismo frio e irônico de Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) do sacramentalismo patético de Pascal e do seu cristianismo angustiado, qui cherche en gémissant. Enquanto Pascal vê no homem, como deve ser, a natureza resgatada pela Encarnação, Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) considera o homem apenas no estado puro de degradação. Daí o seu pessimismo não pascaliano e as suas tendências à predestinação calvinista. Sua “Providência” se aproxima bem mais da de Epicteto do que do Dieu d’Amour de Pascal, presente n’Aquele que disse: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. No seu pessimismo radical, Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) esquece a lição de Bossuet, que é a de todo o verdadeiro cristianismo: Il ne faut pas permettre à l’homme de se mépriser tout entier. E justifica o que no século XVII se dizia: Où finit La Rochefoucauld commence le christianisme.
Esse ceticismo filosófico de Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) , entretanto, parece cessar, em face dos sistemas baseados nas ciências físicas e matemáticas que se desenvolvem a partir de “Cartésio”. E nisso vemos a outra face do nosso Mtias Aires, o estudioso de ciências naturais e matemáticas em Paris, que se impregnara já do racionalismo experimental de Newton e de Locke, os novos ídolos do século, e cita Gassendi. Embora no próprio Pascal pudesse ter aprendido o mais sadio espírito de realismo experimental que Locke iria deturpar com o seu empirismo materialista.
“Hoje as filosofias todas se compõem de matemáticas; de sorte que já não há silogismo que conclua, se não é fundado em alguma demonstração geométrica; na física não se está pelo que se diz, senão pelo que se vê... A formação das nuvens, do vento, da chuva, dos raios e terremotos, e de outros muitos efeitos naturais, a química não só ensina como se produzem, mas também os imita; e isto sem ser necessário saber se o silogismo está em Barbara, ou em Celarent. Um alambique, uma eolípila, uma máquina pneumática, e a mistura de vários corpos, explicam mais em uma hora do que um professor de filosofia em muito tempo; o entendimento percebe melhor sendo ajudado pelos olhos, do que só por si” (fragmento 126). Era Locke contra Descartes. E ambos contra a tradição filosófica aristotélico-tomista, que Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) , iludido pelos preconceitos do seu tempo, julgava incompatível com o espírito de experimentação científica.
Nem assim se corrigia o seu sombrio misantropismo. Hobbes também fora um de seus mestres. A origem do mundo para ele não nos revela um espetáculo de paz mas de luta. Não é nas Escrituras, de onde tirara o vanitas vanitatum para epígrafe de seu livro, mas no bella omnium contra omnes do filósofo do Leviatã, que Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) ia tirar a sua concepção da origem da sociedade na luta: “Na infância do mundo começaram logo a haver combates” (fragmento 26). E o poder não tem outra origem, em contradição aliás com o que em outra parte dizia do direito divino dos reis, senão na força: “Os primeiros homens, que à força de fogo e sangue se fizeram árbitros da terra” (fragmento 26).
Em tudo isso, em todas essas marchas e contramarchas, o que se nota é o homem dos dois séculos, quase sempre sombrio como La Bruyère mas por vezes ingênuo como d’Alembert. Embora o que domine seja sempre o século XVII e nele o seu jansenismo. Faguet escreveu que: “Les penseurs du XVIIe. siècle ont été partagés entre le Jansénisme et le Cartésianisme”. Matias Aires Matias Aires Matias Aires da Silva de Eça (1705-1763) optou pelo primeiro.


MATIAS AIRES. Reflexões sobre a Vaidade dos Homens. São Paulo: Martins Fontes, 1996.